Não sou bruxa, diz a jovem tecelã Amaia (Amaia Aberasturi) a seu inquisidor, o Juiz Rostegui (Alex Brendemühl). E ele responde perguntando a ela se ela sabe o que é uma bruxa. Ela diz que não, e ele então arremata: se você não sabe o que é uma bruxa, não pode saber se é ou não, você não sabe quem você é. Ao longo da narrativa, vamos descobrir que ele, o meritissimo inquisidor, tampouco sabe o que é uma bruxa, e muito menos o que é uma mulher, esse ser ameaçador, que o fascina. Em 1609 qualquer característica feminina libertária poderia ser considerada subversiva e um ato de bruxaria. A história de caça às bruxas no País Basco também é rica ao ao deixar entrever a distância entre os hábitos do povo pagão e os da elite cristã.
O filme Silenciadas (Akelarre) joga o peso da Inquisição sobre o juiz, e não sobre a Igreja, representada pelo abobalhado Padre Cristóbal (Asier Oruesagasti), que caminha sorumbático, patético, e amedrontado, disposto a qualquer coisa para agradar pessoas hierarquicamente superiores, e livrar-se e de qualquer responsabilidade sobre a atrocidade daquelas mortes. Essa a maior armadilha da história do filme, pois sabemos que não foi bem assim. Mirar em camponeses ou pessoas de posse, e depois ficar com seus bens, era algo certamente que ia muito além da questão religiosa, embora não seja por acaso que eles decidam visitar a aldeia justamente no período do ano em que os homens, dedicados à pesca, se encontram ausentes. No entanto, o horror que a Igreja expressa às características femininas, exaltadas como sintomas de bruxaria, é algo que está presente desde o Malleus Maleficarum, o Martelo das Feiticeiras, manual inquisitorial, publicado entre 1486 ou 1487 na Alemanha por dois monges dominicanos. Para eles, não existiam bruxos, apenas bruxas. As práticas mágicas se confundem aos traços mais exuberantes da feminilidade. A falta de memória e de inteligência atribuída às mulheres as transformavam em escravas de seus instintos, seres amorais por natureza, segundo o Malleus. Esse é o conceito que permeia a trama e a relação entre os personagens.
O homem não é vulnerável ao demônio, ele é sempre basicamente bom, mas a mulher sim é instável, e pode se converter num instrumento do mal levando o homem à ruína. Daí ser necessário mantê-las sob controle. Não se pode deixá-las dançar sem parar, explica o Juiz. Então é preciso que se diga que essa obra não pretende inventariar a maior matança de gênero já registrada pela história baseada em pressupostos políticos e ideológicos, ou dados. O filme, que estreou em cinemas espanhóis antes de entrar para o catálogo da Netflix, foi baseado no livro A Feiticeira, de Jules Michelet, e busca compreender quais os aspectos essenciais da sexualidade feminina que desafiavam o status quo daquele período, e que talvez o desafiem até hoje. A sensualidade livre das camponesas que falam um dialeto que eles não compreendem, o puritanismo perverso do inquisidor que quer ver um autêntico Sabá, e chega ao êxtase ouvindo as histórias criadas pela Sherazade basca e suas amigas, a menina Katalin (Garazi Urkola), María ( Yune Nogueiras), Maider (Jone Laspiur ), Olaia (Irati Saez de Urabain) e Oneka (Lorea Ibarra), em sua busca desesperada para escapar da morte nas chamas, são temas que infelizmente permanecem em voga, basta atentar para o avanço do conservadorismo.
O personagem hesitante e cético do argentino Daniel Fanego, o Consejero, embora contribua para respaldar a ideia do clero e dos burocratas a serviço do poder como meramente omissos, o que não é respaldado pela história, ajuda a contribuir para que se veja que as acusações de bruxaria não possuíam a menor fundamentação, não se nutriam de uma religiosidade alternativa e panteísta, ainda que as crenças populares politeístas tenham sido efetivamente os maiores obstáculos enfrentados pela Igreja para se consolidar. O pais basco, cenário do filme, é efetivamente uma região da Espanha com fortes tradições culturais pagãs, e uma mitologia farta repleta de demônios, bruxas, antropomorfos. Mas elas são evocadas pelo filme de forma muito discreta. E até poéticas. Os inquisidores, na verdade, acreditavam na existência das bruxas porque necessitavam delas para extenuar sua obsessão mórbida pelo temido demônio que os habitava e seu vazio existencial. Pablo Agüero conduz com delicadeza a narrativa, além de também assinar o seu roteiro ao lado de Katell Guillou. Foi vencedor de cinco prêmios Goya, o Oscar da Espanha, em categorias como figurino, efeitos especiais e direção de arte.