Num domingo, no final de 2022, quando a pandemia dava tréguas significativas e a vida se reacostumava a um patamar de normalidade, fui ao Sítio Histórico de Olinda com uma colega de turma, a fim de realizar um trabalho para a graduação. Olindense que sou, respirava junto à grande maioria da cidade a atmosfera de expectativa e ansiedade pelo retorno de uma folia adormecida há dois anos. O produto final da atividade seria uma videorreportagem, e a pauta estava focada na preparação dos blocos e baterias de rua para a volta do Carnaval em 2023.
Naquela época, as prévias já aconteciam, não com o mesmo vapor e quantidade de gente como as de 2023 ou as do início desse ano, mas a Praça do Carmo já se ocupava. As ritmistas do bloco Samba Soul Delas aqueciam/afinavam seus instrumentos para mais um ensaio, e posteriormente, ainda sem saber, serem registradas pela câmera do meu smartphone. Conhecido por mim e minha colega naquele dia, o grupo foi personagem da matéria.
O Samba Soul Delas foi fundado em 2012 por Roberta Pessoa, com quem conversamos na ocasião. Ela que já fez parte das Sambadeiras, primeira bateria feminina de samba das ladeiras de Olinda, de outros conjuntos do segmento, assim como do Maracatu, enxergou a possibilidade de ter o seu próprio. Na videorreportagem, Roberta conta que tudo começou como uma brincadeira de amigos e familiares, até virar coisa séria. Atualmente, o Samba Soul Delas é bloco e banda. Na composição do bloco, cerca de 100 mulheres, entre vocalistas, ritmistas, passista e mestra de bateria. Construído pela colaboração e coletividade, o grupo desfila desde 2013 e se sustenta também dessa forma, no intuito de unir, ensinar, aproximar da música, da cultura carnavalesca e dos instrumentos percussivos, as mulheres.
Parte das “Souldetes”, como se chamam as integrantes, formam a banda, que se apresentam em palcos além das ladeiras. Em dezembro de 2023, por exemplo, o grupo levou o som que ecoa na Praça do Carmo nos ensaios aos domingos para a Terça do Vinil. O repertório conta com releituras da MPB e faz sucesso com o público.
Neste ano, as Souldetes desfilam no sábado (10/02) e na segunda (12/02) de Carnaval, às 10h, com saída do Mosteiro de São Bento. Este percurso também fora feito pelo Bloco em 2023, ano de retorno e mudanças.
Soul Delas em 2023: o retorno às ladeiras e o inesperado
O ano de 2023 foi diferente para o Bloco. Depois de dois anos sem cortejo, sem Carnaval, a bateria finalmente retornaria à folia das ladeiras. As expectativas positivas que Roberta elencou na videorreportagem sobre esse retorno tornariam-se realidade.
Roberta participou de todos os preparativos, mas morreu de câncer 12 dias antes do cortejo. “Nunca imaginei passar por essa situação. Carnaval de 2023 foi muito desafiador. Enquanto existia a dor, eu tinha certeza que sem o bloco, não conseguiria passar pelo que passei”, compartilha Yanka Pessoa, filha de Roberta e atual mestra da bateria.
“O Samba Soul Delas sempre trouxe uma carga de muita energia e paixão. Não só o repertório vai compor isso, mas também a participação das Souldetes. Todo mundo ali tem uma importância muito grande para trazer o legado de Roberta. Sinto esse peso grande, pois estou na posição que ela ocupava. Acho que toda vez eu vou pensar nela. O pessoal sempre lembra, cita, e isso traz um sentido para além das músicas, da nossa interpretação. Essa história que o grupo carrega é muito importante pra termos força e transmitir essa energia nas ladeiras”, conta Aline Beltrão, atual vocalista do conjunto, também integrante do Batuques de Pernambuco.
Com a perda, o Carnaval de 2023 ganhou outros contornos. O Soul Delas, assim como as baterias parceiras, se empenharam em celebrar o retorno por Roberta, além de honrá-la com homenagens em seus cortejos. Na dor, a união que Yanka conta ser característica do grupo feminino, intensificou-se.
“Sem dúvidas, o processo foi facilitado por conta do bloco. Escrevi um texto depois de tudo que passou, falando sobre ser muito bom quando temos a teoria e a prática juntos. Um bloco formado por mulheres, pensado para mulheres, feito por mulheres, que de fato, tem a sororidade”, relembra Yanka. “Minha mãe nos ensinou a ser assim. Independente de tudo. Até no hospital ela mandava áudio no grupo perguntando como as meninas estavam. Aquela coisa de não parar. As meninas não pararam porque minha mãe não queria que elas parassem”, acrescenta.
“A sororidade foi a responsável por fazer o bloco passar por tudo o que passou e é o que nos faz querer estar juntas”, diz Aline.
“Somos mulheres guerreiras, maravilhosas, tão poderosas e o nosso lema é conquistar”
O Samba Soul Delas se sustenta pelas próprias baquetas. Com um investimento financeiro independente, limitações podem existir. No entanto, a paixão pelo que se faz instiga a persistência na jornada que acolhe outros propósitos além do Carnaval.
“Estou dando continuidade a um trabalho iniciado pela minha mãe. Isso vem com um peso gigantesco. Esse é o nosso diferencial. Estamos caminhando a passos curtos mas estamos caminhando. Ver que muitas pessoas nos consideram como uma das melhores baterias dentro de Olinda, é gratificante”, assume Yanka.
Ao refletir sobre o cerne do conjunto, a mestra também se refere aos desafios em ocupar esse espaço como bateria feminina. O estigma de que a percussão pertence aos homens ainda que exista nessa sociedade patriarcal não tem vez com o grupo. “O Samba Soul Delas não só toca samba, toca frevo, maracatu, maculelê, samba reggae, funk, samba rock. Termos uma mestra regendo um bloco é grandioso. E é grandioso porque estamos começando a quebrar esses estigmas, e a ocupar os espaços que já eram pra ser nossos há muito tempo. Estamos caminhando, o importante é não parar. O que fazemos é massa, mas ainda é pouco, queremos mais”, deseja Yanka.
“Somos formadas por mulheres e isso traz uma força absurda. Já vi muitas mulheres chegaram pra mim com os olhos brilhando, se vendo realizadas com o que estamos fazendo e querendo fazer parte também”, compartilha Aline.
Para além das questões dos espaços a ocupar, Yanka relembra outro enfrentamento encarado pelo Samba Soul Delas, também ligado ao machismo. Na época da pandemia, algumas integrantes do grupo foram vítimas de violência doméstica. Isso inspirou mobilizações do conjunto que desenvolveu campanhas de conscientização sobre o tema, além de ajudar essas mulheres a investir em medidas cabíveis. Desde então, elas atuam no oferecimento de palestras em prol do empoderamento feminino. “Lutamos por muitas mulheres. O papel social que temos com o bloco é de extrema grandiosidade para quem é de Olinda e para quem não é”, comenta Yanka.
“O Carnaval de 2023 foi todo mundo na raça, chorando. Foi choro e riso. Todo mundo desabava, mas tinha uma hora que vinha uma força que eu não sei explicar de onde. É muito doido dizer que Mainha esteve presente. Ela está presente… em cada tomada de decisão, cada música cantada, ela está em tudo. Acho que tentamos buscar essa força não só nela mas nosso hino também fala sobre isso: ‘Somos mulheres guerreiras, maravilhosas, tão poderosas e o nosso lema é conquistar’”, reflete Yanka.
“Que as pessoas consigam desestressar. O Carnaval tem essa facilidade. Que as pessoas enxerguem isso com mais responsabilidade, que a cultura salva, que a arte salva, que o que a gente faz para o outro é muito importante”, disse Roberta na videorreportagem. O Samba Soul Delas segue nessa levada para 2024 e adiante.
Siga o bloco no Instagram pelo @sambasouldelas. Por lá, atividades do grupo e anúncios de inscrições para oficinas de percussão.