A série O Mundo Sombrio de Sabrina (Chilling Adventures of Sabrina, 2017-2019), baseada na HQ homônima, é produção original da Netflix voltada para o público adolescente. Sua protagonista é Sabrina Spellman (Kiernan Shipka), prestes a completar 16 anos, data fatal, pois sua família, vinculada à Igreja da Noite, possui uma tradição segundo a qual, em seu aniversário, ela teria de optar por um pacto com Satã, tornando-se feiticeira. Orfã criada por duas tias, Zelda (Miranda Oto) e Hilda (Lucy Davis), ela vive ainda com o primo Ambrose (Chance Perdomo), bruxo pansexual, segregado por ter tentado explodir o Vaticano.
Sabrina hesita entre a vida normal de adolescente, ao lado do namorado Harvey Kinkle (Ross Linch) e a vida de bruxa, imposta pela tradição familiar, e seu convívio com os amigos mortais. A personagem Sabrina, criada originalmente em 1962 pela dupla George Gladir e Dan DeCarlo, não era protagonista, e sua aparência era a de uma pin up do período, totalmente rock and roll e curvilínea. A história já teve outra versão televisiva , que se intitulava Sabrina, a Aprendiz de Feiticeira (1996-2003), e narrava o descobrimento das habilidades mágicas da protagonista com seu amadurecimento, mas sempre em tom debochado por conta dos comentários irreverentes do gato Salem (Nick Bakay), seu familiar, presente na atual versão mas sem direito a falas.Sabrina também já foi personagem da série A turma de Archie, como a bruxa de Greendale, pois a cidade é vizinha à Riverdale, título de outra série dos mesmos criadores. O tom ingênuo dos quadrinhos de estreia ganhou tons de noir na adaptação seriada, dirigida pelo seu autor, Roberto Aguirre-Sacasa, com arte de Robert Hack, e inspirada nas aparições de Sabrina na série da dupla, bem mais violenta do que a original, em que a personagem surge ora como uma garota possuída pelo demônio, ora como o próprio Anticristo.
Esse caráter atemporal da temática e o sotaque mais anglo-saxônico dos personagens mais velhos e pertencentes ao culto da Igreja da Noite, liderado pelo Padre Blackwood, é acentuado pela seleção do elenco, caso da atriz australiana Miranda Oto, interpretando a tia Zelda, que não consegue romper com os ritos da Igreja Satânica, ou a escocesa Michelle Gomez, a Madame Satã. A outra tia, Hilda, sempre rebelde, porém incapaz de romper com o culto, é a atriz britânica Lucy Claire Davis, mais conhecida como a Etta Candy de Mulher Maravilha, e considerada inconsequente pela comunidade de feiticeiros. Na dublagem, essa questão do acento se perde.
Uma das personagens mais interessantes é, sem dúvida, a Madame Satã, interpretada pela escocesa Michelle Gomez, responsável por algum dos momentos mais fortes em cena, como antagonista de Sabrina. É a partir dela que as situações vão se desenvolvendo. Ela se apodera do corpo e da voz da professora favorita de Sabrina, Mary Wardwell. É também uma das personagens que crescem na trama, pois ao longo da narrativa nos damos conta de que mais do que uma vilã clássica, ela também é uma mulher que foi seduzida por Lúcifer, e aprisionada a um pacto que não admite mais, mas não consegue se libertar, e acaba por se identificar com Sabrina. Sua inserção na série também é interessante, uma vez que ela é originária de outra série de quadrinhos , pertence a outra estirpe de mulheres, e é um personagem antigo da Archie, que foi atualizada pelos atuais criadores, como descendente do mito Lilith. Gomez, no entanto, acrescenta uma complexidade a ela que rompe completamente com a estereotipia da HQ, inclusive na versão atual, em que a professora é uma mulher jovem e bombada.
Na atualidade a questão da caça às bruxas é discutida como feminicídio, pois a maioria das vítimas eram mulheres, que por algum motivo destoavam de seu tempo. Embora Sabrina seja uma produção ancorada nos cânones do gênero horror fantástico, e de época, ela abre espaço para todas essas questões por meio de seus personagens, e até mesmo para se pensar no conceito de ecofeminismo. Os feitiços são o instrumento perfeito para viajar no tempo sem compromissos com o realismo histórico e propor reflexões que vão além desse momento. Certamente impactada por essas questões, e pressionada pelos leitores mais conservadores, a Archie acabou lançando em paralelo uma versão mais amenizada em cartoons da adolescente Sabrina, roteirizada pela autora da Capitã Marvel, Kelly Thompson. Não se sabe se eles possuem planos de levar a garota para as telas. Mas a terceira e quarta temporadas da sombria Sabrina estão a caminho.