Roger Vieira é um dos novos nomes da renovação pela qual passa a cena de quadrinhos de Pernambuco. Seu primeiro quadrinhos, Não Tenho Uma Arma, saiu no ano passado e traz uma narrativa subjetiva sobre relações familiares vividas dentro de um tanque de guerra. Agora ele lança Aterro, trabalho que traz um viés autobiográfico e que será lançado nesta edição do Festival Internacional de Quadrinhos de Belo Horizonte.
Passado à beira de um canal com ocorrências de inundação, a HQ mostra o ponto de vista de uma criança que vive nesse ambiente. Roger se inspirou em elementos de sua infância vivida na periferia do Recife para compor personagens, falas e situações. É também um retrato ao mesmo tempo duro e singelo da situação dessas crianças moradoras de aterro.
Com uma produção ainda bastante recente, Roger Vieira mostra uma personalidade estética e narrativa já marcante. Um artista jovem com um traço original e que bebe de fontes como David B. e Marcelo D’Salete para criar painéis emotivos. Batemos um papo com Roger sobre suas influências, a produção de Aterro, a cena de quadrinhos no Recife e suas novidades pro futuro.
Aterro tem muito de sua própria experiência. Como foi trazer essas vivências para o gibi?
Eram lembranças que sempre estiveram comigo, mas eu não conseguia encontrar uma maneira de traduzir em imagem e texto. Um dia comecei a escrever umas frases que ouvia da minha mãe, do meu pai, pela rua e assim foi saindo a primeira história. É meio que um resgate e interpretação do que vivi. Foi interessante porque à medida que eu ia desenhando e postando cenas separadas no Instagram algumas pessoas da época reconheceram alguns cenários e falas que aparecem no quadrinho.
Seu trabalho anterior Não Tenho Uma Arma tinha um argumento inusitado, mas explorava na sua essência as relações familiares. E esse gibi novo, do que você fala?
É sobre como uma criança percebe e se relaciona com o seu bairro, rua, moradores e violência comum nas periferias. Cresci em Olinda e em Paulista [duas cidades da Região Metropolitana do Recife], a minha infância toda em Olinda. Também dei aulas em escolas públicas (Santo Amaro, Córrego da Bica, Conjunto Beira-Mar) durante a faculdade de pedagogia. Assim como eu cresci com esse cenário de guerra e paz, eu via outras crianças se desenvolvendo nesse mesmo cenário e cada uma tomando um rumo diferente. Isso sempre me deixou intrigado, o caminho que cada uma faz.
Outra relação que vejo nos dois gibis é que são personagens que vivem à margem (no caso de Aterro até mesmo literalmente).
Acho que é porque eu me senti assim por muito tempo, não consegui fazer muita coisa e só consegui ter acesso a algumas coisas depois de adulto. Então pra mim é mais comum escrever sobre esses personagens, acho que entendo melhor o lado deles. Alguns personagens de Aterro existiram, algumas coisas realmente foram ditas.
A situação das pessoas que sofrem com os alagamentos é algo grave e antigo aqui no Recife. Mas o gibi tem um lado de fantasia. Como se deu essa escolha?
Tudo que acontece no quadrinho é interpretado pelo menino. Como criança, ele fantasia até certo ponto da história, mas tem hora que fica insustentável até pra ele.
Quem mais influenciou seu traço? Quando percebeu que queria mesmo fazer quadrinhos?
Tive algumas influências aqui. Algumas fundamentais são o David B, o [Marcelo] D’salete, Matotti, o pessoal da Ragu, [Katsuhiro] Otomo, Tayo Matsumoto. Comecei a fazer quadrinho com 16 anos quando um amigo trouxe uma página que tinha feito na escola. Começamos a fazer uma mini-competição de quem fazia mais páginas, a maior história, eu fiquei nessa até hoje. Haha.
Quem você mais admira nos quadrinhos e que nomes você tem acompanhado do atual cenário?
Tenho acompanhado o Aureliano Meds, Aline Zouvi, Paula Puiopo, Raul Aguiar, Rafael Sica, Pedro Franz, Power Paola, João Pinheiro. Os gringos Michael Deforge, Patrick Kyle, Richard Valley, cada dia aparece um. O Instagram é um lugar massa pra descobrir gente nova.
É impossível não tocar no tema da renovação do cenário de quadrinhos do Recife. Desde a CCXP Tour que vemos um maior movimento de autores, coletivos e eventos. Claro, sempre rolou quadrinhos por aqui, mas o momento atual está, não sei, diferente. Sente isso?
Olha, o pessoal se empolgou depois da ComicCon. Vários eventos estão acontecendo, tem organizadores interessados em ganhar dinheiro (cobrando valores gigantes pela inscrição), outros que acabam funcionando mais como troca de gibis entre colecionadores e alguns que realmente funcionam. São bons exemplos a Bienal, Feira Cria , ambos muito bem organizados. Tá diferente sim, tem mais evento e lugar pro pessoal se mostrar. Mas o bom conteúdo sempre existiu, Mascaro, João Lin, Damião, Flavão, Raoni [Assis] tão aí pra provar isso.
Fala um pouco do Coletivo Cratera. Qual a proposta de vocês e o que planejam para breve?
Éramos amigos antes de tudo. Tínhamos um grupo onde tiramos a dúvida um do outro, conversamos sobre quadrinho, mercado e surgiu a ideia de oficializar na Feira Cria. De lá pra cá a gente vem planejando algumas coisas. Tem possibilidade de sair muita coisa diferente, porque cada um sabe fazer coisas diferentes e também conhecem o mercado.
Como é trabalhar de forma independente com quadrinhos aqui no Estado? Acho interessante o fato de você e outros novos nomes já se arriscarem em narrativas longas.
É difícil como em todo lugar, talvez aqui ainda mais por não ter lugar onde deixar os quadrinhos para vender. Com exceção da Banca Guararapes, que sempre nos ajuda demais. Temos que vender na internet e deixar em bancas de outros estados. A Ugra e a Peixe de Luz são bem parceiras nesse sentido.
Pode parecer estranho , mas eu nunca fui de fazer zines. Mesmo os materiais que fiz na adolescência e ninguém viu eram grandes, já tinha pretensão de ser nesse formato de livro. Talvez por influência de quadrinhos longos como os mangás. É difícil fazer história grande, mas o desafio vale a pena, uma hora a gente acerta.
Depois de Aterro quais seus próximos planos?
Eu pretendo desenvolver mais o Aterro, redesenhar as duas primeiras histórias (não fiquei satisfeito com o resultado), contar mais algumas histórias e compilar tudo num livro. Tenho o Leoa que está parado, por umas questões que surgiram com a história, linguagem visual. Também estou trabalhando junto com o Raul Aguiar no roteiro do TiMO 2 e desenhando o Pindorama Volume 3, tem bastante coisa acontecendo. ainda bem.
Compre as HQs de Roger Vieira na Ugra ou na Peixe de Luz.