Tentar transpor nossas memórias em forma de narrativa, seja ela em qualquer meio, é sempre um desafio imenso. Assim que as contamos elas sofrem uma transformação tremenda e começam a fazer um percurso que as tornam quase independentes da nossa real experiência. As memórias contadas também possuem uma força emotiva bastante carregada, uma vez que se leva à narrativa muito das reflexões pessoais em relação ao que foi vivido.
No caso do gibi de estreia da quadrinista Jéssica Groke, essas reflexões e memórias foram transportas em uma obra repleto de sinestesias e experimentações no modo de narrar.
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Lançada no último Festival Internacional de Quadrinhos (FIQ), a HQ marca a estreia da quadrinista e fala de uma viagem ao lado de seu irmão para Paraty (RJ) em 2016. O roteiro desenvolve a relação fraternal ao mesmo tempo em que revela aos poucos segredos e questões familiares que marcaram a vida dos personagens. Jéssica permeia a trama com memórias de infância e ajuda a construir a relação afetiva dos irmãos ao mesmo tempo em que mostra grande domínio da narrativa, com diálogos bem escritos e convincentes.
Mas o que mais impressiona é o modo como a autora experimentou na narrativa dos quadrinhos para contar sua história. É como se as características próprias dessa mídia a ajudassem a refletir sobre as relações familiares que estavam sendo contadas. O uso da metáfora e do traço escuro e hachurado mostrados no clímax dizem muito sobre um estado de espírito de ruptura, como se estivessem ali como uma descarga emocional, catártica. Logo em seguida, o desfecho dá uma respirada profunda, aponta para uma calmaria, como se estivéssemos diante de um entendimento, uma superação. Uma das experiências mais bonitas nos quadrinhos brasileiros em tempos recentes.
O desenho de Jéssica finalizado apenas no grafite colabora para entrarmos com ela nessas memórias, pois cria uma sensação de algo muito pessoal. Ela também não usou requadros, o que é uma ligação estética interessante se pensarmos que as lembranças são soltas, sem delimitação. Dessa forma, foram os os elementos da página, como cenários, pessoas e objetos, que passaram a ditar o ritmo da leitura dos quadrinhos, indicando as sequências.
A paisagem de Paraty, cidade litorânea bastante turística no Rio de Janeiro, também é relevante na HQ, pois serve tanto como contraste quanto como reforço da beleza presente na relação dos dois irmãos. Já em outros momentos fica como um oposto à desolação de certas lembranças.
Me Leve Quando Sair é uma dessas HQs que conseguem traduzir sentimentos e provocar sensações que vão além de uma experiência trivial de leitura. Alegria, medo, tristeza, saudade, muita coisa coube nessa história curta sobre como são fortes os laços de afeto que criamos.
ME LEVE QUANDO SAIR
De Jéssica Groke
[Independente, 44 páginas, R$ 15 / 2018]
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