O último dia do Rec-Beat entregou com excelência a força e a vontade de se viver que existem no último dia de Carnaval. A capacidade de se mesclar ritmos e propostas artísticas tão diferentes deixaram a impressão de que vários outros dias aconteceram na noite desta terça (13). No que parecia ser um agrado de despedida, as chuvas deram uma trégua e não apareceram no dia de encerramento.
Abrindo o palco, Geni aqueceu o público para as demais atrações e permaneceu entre os intervalos ao longo da noite comandando a mixagem. Produtora e DJ, Geni vem numa crescente e tem se afirmado como uma das protagonistas da música eletrônica do Recife. Anteriormente, foi uma das atrações do palco KMKAZE no Coquetel Molotov de 2023.
“Pensar música eletrônica, acredito que, para mim, é um viés também de diversidade. A gente sabe muito bem que Recife, principalmente, é uma das cidades que tem profissionais [da música eletrônica] que são, majoritariamente, pessoas trans e que não estão ocupando espaço apenas por serem pessoas trans, mas sim porque têm trabalho de qualidade, têm pesquisas que são dissonantes, e acho que esse reconhecimento dá um gás para a gente”, refletiu a DJ
Programação do Carnaval 2024
Shows no Marco Zero: Gilberto Gil, Ludmilla, Luísa Sonza, Alceu Valença
Rec-Beat: Letrux, Ana Frango Elétrico, Urias
Praça do Arsenal e Pátio de S. Pedro: Rubel, UANA, Marcelo D2
Olinda, praça do Carmo: Nação Zumbi, MC Tocha, Siba
Olinda, Guadalupe: Conde Só Brega, Dany Myler, Abulidu
Ornamentados nas cores dourado e amarelo em saudação a Oxum, o afoxé Filhos de Dandalunda levou seus atabaques ao Cais da Alfândega numa apresentação requintada. Nos versos, um canto sobre a perseverança das religiões de matriz africana e orgulho do povo negro frente ao racismo e preconceito.
No palco, Pai Moacir de Angola, vocalista do afoxé, deixou uma mensagem e pedido de respeito para o ritmo e para as religiões de matriz africana. “Através da musica e da dança mostramos que nossa religião tem muito a oferecer”, afirmou. Ao final da apresentação, o Afoxé Filhos de Dandalunda deixou o Rec-Beat banhado em banho de cheiro e axé.
Com pontualidade, a banda belga Echoes Of Zoo subiu no palco. Em português, o saxofonista o grupo, Nathan Daems, agradeceu ao público pela oportunidade de trazer a banda ao Brasil. “O Rec-Beat tem uma paixão pela música” afirmou. Com uma proposta fora do lugar-comum quando se pensa em jazz, a banda une o ritmo ao rock psicodélico. Sem nenhum verso ou participação vocal, o saxofone se junta a percussão e aos acordes da guitarra, convergindo em um som que é difícil até de se definir ou nomear.
O multi-instrumentista Guilheme Kastrup, fez uma participação especial na apresentação, dando um toque de brasilidade ao repertório da banda com o acompanhamento do pandeiro e dos tambores. Com a bandeira da Palestina envolvendo os tambores, Kastrup se manifestou a favor do povo palestino. “Viva ao Recife, viva ao Carnaval, viva a Palestina, um povo oprimido, como nós, que está precisando de nossa atenção e de nossa ajuda” declarou.
O uso intuitivo e habilidoso dos diversos instrumentos de percussão de Kastrup se juntou ao som de Echoes of Zoo e transformou a apresentação em uma conversa com publico, que deu retorno, em certo momento recebendo até o complemento rítmico por um tamborim anônimo vindo da plateia. o grupo encerrou a apresentação com a faixa homônima ao seu ultimo álbum Speech of Species, lançando em 2023
No final da noite, o público já se aglomerava no Cais da Alfândega e depois da apresentação espontânea do grupo belga, outra atração europeia subiu ao palco do Rec-Beat. A DJ alemã Sarah Farina comandou a mesa mixagem do festival com um set baseado no “Raibow Bass”, sua forma autoral de tocar música eletrônica.
Entre inspirações sonoras muito diversas, a artista escolheu o hyperfunk brasileiro para abrir o set. o som de Farina era composto de uma ecleticidade bem executada, com graves maciços e frequências rápidas. Afrobreat, ball room, pop, house e música eletrônica latina foram algumas das áreas que ela navegou durante a apresentação.
Recebidos por uma multidão que já aguardava Urias, trio Ácido Pantera deu uma dose eletrizante de música colombiana ao Recife. O show tinha um repertório majoritariamente composto por faixas de seu álbum La Pachanga (2023). Com um patamar alto já estabelecido por Farina em seu set, Ácido Pantera conseguiu elevar ainda mais a energia do povo em sua apresentação.
O grupo coloca os ritmos típicos da américa latina – cumbia, salsa, merengue – em um terreno contemporâneo experimental. Com as percussões de um lado e a mesa controladora do outro, o trio casa os sintetizadores psicodélicos com os tambores, a gaita colombiana e outros instrumentos.
Por falas em português anotadas no celular, Juan Por Dios, vocalista do grupo, se comunicou várias vezes com o público recifense. Antes de performar a faixa “Llueva Encima de Mi”, Juan passou um recado para o publico brasileiro. “Isso é América Latina, somos família”, afirmou. A produção frenética de Ácido Pantera incendiou o Cais da Alfândega e teve uma resposta imediata do publico, que devolveu o entusiasmo dos músicos com a dança ininterrupta.
A mente explosiva de Urias
Nome mais aguardado da noite, a cantora mineira abalou as estruturas do bairro do Recife, Urias chegou ao Rec-Beat como uma força da natureza. Com um show que entrega vocais e coreografias, Urias tem porte de pop star, como esperado. Com a turnê “H.E.R Mind”, baseada em seu álbum de mesmo nome, a setlist ainda inclui lançamentos antigos. “Ultimate One” foi a faixa escolhida para a abrir a apresentação e deu o tom para o restante do show: arrebatador.
“Diaba”, seu single de estreia, rompeu pelo festival com um coro vindo da plateia quase tão alto quanto a voz da artista. Provando que é um espetáculo por si só, o dancebreak com “Frita” e coreografia de vogue, Urias ocupou o palco sozinha. A coreografia e o balé, inclusive, são destaques na apresentação. Sem banda, as bailarinas e as cantora são capazes de ocupar todo o espaço do palco com rotinas complexas de coreografia.
A frenética “Je Ne Se Quoi” foi ponto alto no show e arrebentou o Cais da Alfândega com os beats estridentes. O encerramento ficou por conta do house de “Cuntelectual”, uma das faixas mais populares do álbum. Como já foi cantado por ela em “Peligrosa”, Urias desembarcou no Rec-Beat silenciosa como uma bomba, e atingiu o ápice da noite com seu show.
Ao final da sua 28ª edição, o último dia do Rec-Beat foi a epítome do que o festival representa: um espaço de diálogo entre diferentes ritmos e expressões musicais, que ao mesmo tempo também dialogam com o público. Uma iniciativa gratuita, nas ruas, que condensa tradição e experimentação musical.