De medalhões como Will Eisner (1917 – 2005) e Jerry Robinson (1922 – 2011), a celebrados nomes brasileiros, como Angeli e Laerte, além de autores que despontariam no mercado anos depois, a exemplo dos irmãos Fábio Moon e Gabriel Bá e de Shiko, o Festival Internacional de Humor e Quadrinhos de Pernambuco (FIHQ-PE) reuniu no Recife, em sua breve existência – entre 1999 e 2007 –, diferentes gerações de artistas.
Realizado, a partir de sua segunda edição, nas dependências da Torre Malakoff (monumento histórico do Bairro do Recife convertido em espaço cultural no ano 2000), o FIHQ serviu para aproximar do público o trabalho destes e de inúmeros outros quadrinistas, chargistas e ilustradores – principalmente dos artistas locais, para quem o evento marcou época em diversos aspectos.
O festival
Idealizado pelo chargista Lailson de Holanda, falecido em outubro do ano passado de Covid-19, que desde os anos 1970 circulava por festivais do gênero dentro e fora do país, como o Salão Internacional de Humor de Piracicaba e o Salon International de la Caricature, de Montreal, o FIHQ foi uma tentativa inserir o Recife nesse circuito. Enxuta, a primeira edição teve cerca de 20 convidados, incluindo a paulistana Sonia Bibe Luyten, pioneira nos estudos de mangás e cultura pop japonesa no Brasil, e veteranos como o caricaturista português António Antunes e o desenhista norte-americano Jerry Robinson, cocriador de personagens essenciais da mitologia do Batman, como Robin e Coringa.
“Foi um salão que conseguiu ganhar o respeito mundial rapidamente. Na terceira edição já era reconhecido internacionalmente”, afirmou Lailson, em entrevista à Plaf no início de 2021. O artista disse que a proposta do festival era não só colocar o Recife no contexto internacional das artes gráficas, mas também “promover um salto de qualidade” na produção local. “Nomes como Luciano Félix e Roberta Cirne são resultado dessa minha ideia. Quando vejo esses meninos fazendo revistas, significa que o que eu fiz serviu para uma nova geração”.
Lailson esteve à frente da organização das seis primeiras edições e participou também do sétimo FIHQ, em 2005. A partir do ano seguinte, o evento ficou inteiramente sob responsabilidade da Associação dos Cartunistas de Pernambuco (Acape), que foi fundada e presidida pelo próprio Lailson entre os anos de 2001 e 2004.
Em toda sua existência, o evento foi viabilizado com recursos da Fundarpe (Fundação do Patrimônio Histórico e Artístico de Pernambuco) e de alguns patrocinadores privados. Mudanças na gestão dos recursos do governo estadual para projetos artísticos culturais, que democratizaram o acesso de produtores ao Fundo Pernambucano de Incentivo à Cultura (Funcultura), acabaram por condicionar a realização do FIHQ à aprovação do seu projeto em editais anuais, o que ocorreu pela última vez em 2007.
O cartunista Samuca Andradre, que participou de todas as edições do festival e esteve mais diretamente ligado à organização a partir de 2005, através da Acape, recorda que em sua última edição, a verba habitual do evento já havia sido reduzida em aproximadamente 30%. “Tentamos [o edital do Funcultura] mais três vezes, em 2008, 2009 e 2010, mas não fomos aprovados”. Situação parecida foi enfrentada depois pelo Salão Internacional de Humor Gráfico de Pernambuco, espécie de sucessor espiritual do FIHQ, realizado também por Samuca. O evento, viabilizado a partir de editais de fomento cultural, teve, até agora, três edições: em 2012, 2016 e 2018.
Embora trabalhasse profissionalmente desde 1984, Samuca enxerga que o FIHQ trouxe contribuições relevantes para sua carreira, entre elas, a publicação de seu primeiro livro: A Vida Por Uma Linha, organizado com a finalidade de ser lançado durante a primeira edição do evento, em 1999. O título acabou premiado como melhor obra na categoria Cartum no HQ Mix daquele ano. Outra herança, segundo o cartunista, são as memórias de boas conversas e aprendizados com outros artistas. “Além de ter sido um incentivo para fazer meu primeiro livro, o evento era uma boa ocasião para participar de oficinas, trocar ideias com artistas de fora, ter uma outra visão sobre técnicas e sobre mercado”, destaca.
Will Eisner no Recife Antigo
Um dos mais importantes nomes das histórias em quadrinhos, Will Eisner é também um dos mais lembrados entre os artistas que passaram pelo FIHQ. “O contato com ele foi muito importante pra mim”, recorda Pedro Ponzo. Santista radicado no Recife, o quadrinista se mudou para a capital pernambucana em 1996, para cursar artes visuais na Universidade Federal de Pernambuco – onde conheceu sua esposa, a também quadrinista Roberta Cirne.
“Levei uns livros pra ele assinar e levei também a minha pasta [de desenhos]”, conta. “Mostrei a pasta e perguntei quanto tempo ele achava que eu ainda demoraria para me tornar um profissional”, diz. “Aí ele se virou e me disse: ‘Olhe, você deveria estar, há muito tempo, ganhando dinheiro com isso, já deveria estar no mercado. Não sei o que você está esperando’”. Segundo o quadrinista, as palavras de incentivo do criador do Spirit lhe deram motivação para começar a buscar trabalhos na área.
O FIHQ serviu para aproximar do público o trabalho de inúmeros quadrinistas, chargistas e ilustradores.
Presidente do júri do FIHQ em 2001, Eisner teceu elogios também ao vencedor do prêmio da categoria de quadrinhos daquele ano. “Quando ele disse para mim que meu trabalho funcionaria em qualquer parte do mundo, porque se entendia com clareza a ideia e não dependia de texto, eu fiquei besta. Era Will Eisner dizendo que gostou do meu trabalho. Nesse dia eu fiquei muito emocionado”, comenta o cartunista Jarbas Domingos.
“Foi quase”
Após ter a participação de Will Eisner, a organização do FIHQ esperava trazer, na edição seguinte do evento, outro bastião dos comics norte-americanos: Mort Walker (1923 – 2018), o criador de Recruta Zero e de Zezé & cia (Hi & Lois, no original). O autor já havia confirmado a presença para vir ao Recife no ano seguinte, mas os atentados terroristas de 11 de setembro marcaram profundamente o quadrinista. Na data, aliás, Walker fazia uma viagem aérea com a sua esposa, Cathy, e sobrevoou o World Trade Center momentos antes dos aviões colidirem com as Torres Gêmeas. Ao aterrissar na Flórida, o aeroporto estava em estado de alerta. “Ele disse que nunca mais viajaria de avião”, recordou Lailson, que negociava a vinda do artista. O realizador também lamentou outros nomes que chegaram perto de fazer parte do evento, mas acabaram não participando: “Nunca consegui trazer Ziraldo para o festival. As agendas nunca coincidiam, era um cara muito ocupado. Quino foi outro que tentei muito, mas também não consegui. John Byrne também, foi quase”.
Trocas e estímulos
O recifense Luciano Félix, autor de Wander e de Mistiras, ainda não trabalhava profissionalmente quando o FIHQ surgiu (“minha carreira só começou mesmo em 2002”, diz) e acredita que o evento contribuiu para sua formação artística. Para Félix, um dos aspectos mais interessantes do evento era a possibilidade de integração entre artistas veteranos e iniciantes, como era o caso dele, à época. “Essa interação foi de grande importância para dar boa parte da identidade que os quadrinhos e as ilustrações têm hoje no estado”, acredita Félix, que chegou a ser premiado na categoria Quadrinhos, na sexta edição do FIHQ-PE, em 2004, e a receber menção honrosa em 2006.
Jarbas Domingos também era outro artista em início de carreira, naquela época. Ele havia começado a trabalhar profissionalmente em 1998, como cartunista da Folha de Pernambuco, quando tinha apenas 18 anos. Poucos anos depois, foi premiado na segunda e na terceira edição do FIHQ – neste último, recebendo o primeiro lugar que conquistou os elogios de Eisner.
“Estava bem verde e inseguro, mas as premiações deram um feedback positivo e me ajudaram a ter mais confiança”, relembra ele, afirmando que os prêmios impulsionaram seu trabalho para fora do estado.
“Era Will Eisner dizendo que gostou do meu trabalho. Nesse dia eu fiquei muito emocionado”
Jarbas domingos
A quadrinista Roberta Cirne (Sombras do Recife, Gibi de Menininha) também ressalta a possibilidade de observar trabalhos de outros artistas – e de ser observada. “A gente podia mostrar a nossa arte para um público maior e trocar experiências com outros quadrinistas. Era, também, a oportunidade de ver gente de fora do Recife falando sobre o mercado”, recorda. “Era o ponto alto para quem fazia quadrinhos aqui”.
Na relativamente breve existência, o festival conseguia mobilizar artistas por um período que ia muito além dos dias em que eram realizadas a exposição e as atividades do evento. “Quando acabava o FIHQ, a gente já se preparava para a edição seguinte”, diz Cirne, explicando que se dedicava ao longo de meses nas produções de materiais que pretendia inscrever no ano seguinte para o FIHQ.
Passada mais de uma década desde o fim do FIHQ, Pedro Ponzo sente que a lacuna deixada no calendário cultural da cidade nunca foi devidamente preenchida. “Temos essa carência. Os eventos de quadrinhos mudaram o formato, deixando de lado o aspecto artístico para algo mais comercial, como entretenimento”, analisa. Por outro lado, Roberta Cirne enxerga ao menos um lado positivo na situação: a busca por outros espaços. “Parece que o FIHQ, ao mesmo tempo ajudava e também impedia que a gente saísse para o mundo”, comenta, afirmando que as incertezas sobre a continuidade do festival, a partir de 2005, acabaram por encorajá-la a tirar da gaveta projetos antigos.
O valor dos festivais
O presidente da Associação dos Cartunistas do Brasil (ACB), José Alberto Lovetro, mais conhecido como JAL, que chegou a participar de algumas edições do FIHQ, destaca que a descontinuidade de festivais e salões de humor não é um problema enfrentado apenas em Pernambuco. “Eles (eventos do tipo) continuam existindo, mas, aos poucos, vão rareando”, observa, acrescentando que a escassez muitas vezes está relacionada a mudanças em prefeituras ou governos, geralmente os principais responsáveis pela viabilização desses festivais.
Uma forma de assegurar a continuidade de eventos como o FIHQ, opina JAL, é ter a sua realização garantida por lei, como ocorre com o tradicional Salão de Humor de Piracicaba, em São Paulo, cuja realização anual é regulamentada por lei municipal. Além de enfrentar a redução de eventos dedicados ao segmento, Lovetro lembra que jornais e revistas têm valorizado cada vez menos o humor gráfico, diminuindo ou eliminando o espaço ocupado anteriormente por ilustradores e cartunistas.
Embora hoje, a partir da ACB, organize exposições virtuais, a exemplo de uma mostra online de cartuns tendo como tema o novo coronavírus, iniciada no último mês de março, JAL considera os salões e festivais tradicionais insubstituíveis. “Quando cada um trabalha em sua casa, sozinho, parece que é ele contra o mundo, some a noção de coletividade, que tem muito mais força. E os salões de humor têm esse poder. Não se trata apenas de se mostrar ao público, mas de ter um momento de discussões internas nossas, de como a gente trabalha”.
Grandes nomes do FIHQ
1999
Jerry Robinson (EUA)
2000
Megumu Ishiguro (Japão)
Rui Pimentel (Portugal)
Sonia Luyten (SP)
2001
Will Eisner (EUA)
Fernando Gonzales (SP)
Otávio Cariello (PE)
2002
Adão Iturrusgarai (RS)
Angeli (SP)
Glauco (PR)
Laerte (SP)
2003
Ota (RS)
Paco Ermengol (Argentina)
Simanca (Cuba)
2004
Keno Don Rosa (EUA)
Lourenço Mutarelli (SP)
Samuel Casal (RS)
2005
Biratan Porto (PA)
Jano (França)
Stéphane Heuet (França)
2006
Peter Kuper (EUA)
Naif Al-Mutawa (Kwait)
Nani (MG)
2007
Alejandro Archondo (Bolívia)
Fábio Moon e Gabriel Bá (SP)
Shiko (PB)