A noite dessa sexta-feira (13) foi sobretudo uma celebração ao Cinema pernambucano. Por debaixo do falatório e dos passos frenéticos entrando e saindo do saguão do Cinema São Luiz existia, de fato, empolgação e expectativa. Depois de quase três anos, um dos últimos cinemas de rua do Brasil volta a receber o público de maneira definitiva. O retorno de um dos equipamentos culturais mais importantes do Estado veio acompanhado da abertura da 15ª edição do Festival Internacional Janela de Cinema, realizado por Kleber Mendonça Filho e Emilie Lesclaux desde 2008.
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O período de hiato no funcionamento do Cinema São Luiz aconteceu por uma série de problemas que perdurou da pandemia do Covid-19, a mudança de gestão depois das eleições de 2022 para governo do Estado, redução de recursos humanos e questões estruturais pioradas pelas chuvas. No fim de tudo isso, felizmente, o calor do público retornou à sala de exibição, que continuará recebendo o público aos finais de semana, como foi confirmado pela presidente da Fundarpe, Renata Borba.
A presidente da Fundarpe também afirmou que, durante a semana, as reformas visando acessibilidade e aprimoramento estrutural continuam, além da aquisição de novos equipamentos para projeção e, por fim, anunciou que o segundo pavimento do cinema, voltado para a rua da Aurora, vai abrigar o Centro de Referência do Audiovisual de Pernambuco, espaço dedicado à documentação da história do audiovisual local, destacando obras, movimentos e nomes relevantes na cinematografia pernambucana.
A vice-governadora Priscilla Krause e a secretária de Cultura e Turismo do estado, Cacau de Paula, também estavam presentes na solenidade. Ambas reafirmaram o valor histórico do equipamento cultural. “Cinema é cultura. Cultura é crítica, liberdade de expressão e manifestação política”, afirmou a vice-governadora. Além das autoridades estaduais, estavam presentes o ministro de Pesca e Agricultura, André de Paula, os senadores Humberto Costa (PT) e Fernando Dueire (MDB), as deputadas estaduais Dani Portella (PSOL) e Rosa Amorim (PT) e a vereadora Liana Cirne (PT). O prefeito do Recife, João Campos (PSB), não foi ao evento.
Sessão de abertura: Manas, de Marianna Brennand
Após as falas das autoridades políticas, o diretor artístico do Festival, Kleber Mendonça Filho, deu um discurso breve sobre o significado que o retorno do Cinema São Luiz tem para o setor do audiovisual pernambucano como um todo e como o Festival Janela de Cinema acredita no cinema como um meio de se pensar e de fazer política.
“Eu acredito nisso, o Janela [de Cinema] acredita e muita gente que faz cinema e audiovisual no Brasil também. Eu acho incrível e muito bom, depois de um certo período pelo qual a gente passou nesse país, ouvir isso na entrega de um equipamento cultural como o [Cinema] São Luiz e em uma noite como essa”, disse. Mendonça também homenageou Geraldo Pinho, programador e gerente do Cinema São Luiz que faleceu em 2021. “Esse é o primeiro Janela que a gente faz sem a presença Geraldo Pinho. Eu quero dedicar essa semana inteira a Geraldo Pinho”, afirmou.
O primeiro longa-metragem da noite foi Manas (2024), estreia da cineasta Marianna Brennand na ficção e premiado no Festival de Veneza. A ideia do filme partiu de uma dificuldade ética que Brennand teve ao tentar produzir um documentário sobre casos de abuso e exploração sexual de meninas região do Marajó, no Pará. Com a percepção de que rememorar os casos de abuso dentro do documentário seria uma forma de reviver o trauma e vitimizar as crianças outra vez, a cineasta decidiu ficcionalizar os casos e representa-los através de personagens.
“Eu faço cinema porque eu acredito no poder do cinema como uma ferramenta importante de transformação social e política, e eu acho que, para transformar, a gente precisa gerar empatia no outro, trazer a pessoa para o lugar da dor de quem está sofrendo. O cinema me proporcionou a oportunidade de construir uma história com muita delicadeza, muita ética, muito respeito, que coloca o espectador no coração e na alma dessa menina de 13 anos, enquanto ela sofre violências inaceitáveis, que nenhuma mulher deveria passar. Esse é um filme que foi filmado no Marajó e representa uma realidade muito específica de lá, mas exploração sexual infantil, abuso intrafamiliar acontece no Brasil inteiro, em todas partes do mundo. O meu desejo com esse filme é que ele lance luz, gere debate, inspire mulheres a terem coragem de quebrar o silêncio e esse enorme tabu em torno desse tema, que ele é político, ele é social, ele é de direitos humanos, mas ele não deve ser partidário”, afirmou Marianna a Revista O Grito!.
Em seu discurso, a diretora dividiu o palco com Carolina Benevides, da produtora Inquietude Filmes, e os membros do elenco Ingrid Trigueiro, Clebia Sousa, Fátima Macedo, Jamilli Corrêa – protagonista que também estreou como atriz no longa -, Rodrigo Garcia e o assistente de câmera André Prata.
Sensível, mas também denso e violento, o filme de Marianna Brennand ajustou o público de acordo com a severidade e a sessão teve um tom bastante sério, de modo que os aplausos no final também foram seguidos por um certo silêncio.
Homenagem aos clássicos
A segunda exibição da noite foi uma versão restaurada em 4K de Carrie, A Estranha (1977), clássico do terror dirigido por Brian de Palma e adaptação do romance homônimo de Stephen King. O longa-metragem foi precedido pelo curta-metragem Descamar, do cineasta brasiliense Nicolau de Oliveira Araújo, que reflete de maneira breve e bastante profunda sobre o processo da primeira menstruação como uma experiência de isolamento para a mulher por uma série de fatores, mas, principalmente, relacionada à falta de informação e diálogo dentro de casa.
Estes são temas também presentes em Carrie, ainda que com graus de aprofundamento e linguagens visuais bem distintos. A segunda sessão da noite foi mais festiva e descontraída que a sua antecessora, uma atmosfera mais leve que ficou perceptível pelos risos frequentes durante algumas cenas mais caricatas do filme norte-americano. No clímax do filme e todo o caos do baile de formatura, o público estava concentrado, de modo que nem risadas se ouviam mais.
O primeiro dia do Janela de Cinema foi marcado por uma sensação geral de retorno, uma consciência coletiva de que os recifenses estão se reapropriando de um espaço que está ligado à própria história da cidade. Ao mesmo tempo, já ficou clara qual a proposta de cinema que o Festival que exibir: um cinema consciente, politicamente engajado e crítico.