Poco Hombre: Escritos de Uma Bicha Terceiro-Mundista
Pedro Lemebel (Ignacio Echeverria, org)
Zahar Editores, 398 páginas, 2023, R$ 57,99
Tradução de Mariana Sanchez
No Brasil conhecemos, além das obras nacionais, muitos livros, filmes e autores que abordam as questões LGBTQIA+ oriundos dos países europeus e dos Estados Unidos. Da América Latina, com exceção talvez da Argentina, pouco sabemos. Um filme aqui, um livro acolá e priu. Por isso termos em mãos, traduzido para o português, o livro Poco Hombre, do chileno Pedro Lemebel (1952-2015), um lançamento da Zahar, é uma oportunidade ímpar de um olhar “fora do eixo” tradicional das reflexões sobre o tema.
O subtítulo “escritos de uma bicha terceiro-mundista” do livro, à primeira vista, pode até parecer estereotipado e datado, todavia, é isso mesmo. Lemebel, falecido em 2015, nunca escondeu sua orientação sexual e nunca perdeu de vista, em toda sua carreira, o seu lugar de fala e o contexto em que desenvolveu sua obra artística como bicha/travesti nascida numa favela na periferia de Santiago.
Anti-imperialista e anticolonialista, não se deixou levar por modismos e movimentos como bem notou o romancista Roberto Bolaño: “travesti, militante, terceiro-mundista, anarquista, mapuche adotivo, vilipendiado por um establishment que não suporta suas palavras exatas… para mim, Lemebel é um dos melhores escritores do Chile e o melhor poeta da minha geração, embora não escreva poesia”.
De fato, a leitura da coletânea de crônicas, organizada pelo editor espanhol Ignacio Echeverria e primeira obra do autor publicada no Brasil, nos deixa em estado de graça e choque. Lemebel não fez da literatura um lugar de platitudes. Seu texto é cortante, ferino, raivoso e belo. Suas palavras seguem um fluxo em que se mesclam memórias afetivas de sua dura vida pessoal e a descrição de fatos da vida chilena, costurados com observações e análises desses acontecimentos, revelando a brutalidade do poder, sobretudo os anos da ditadura Pinochet, a desigualdade e a discriminação enfrentada pelos pobres, as mulheres e homossexuais, uma realidade do cotidiano social do Chile, mas também de muitos povos e nações.
Lemebel, desde os anos 1980, se insurgiu contra os intelectuais adeptos do beletrismo, assumiu uma postura anticapitalista e foi um militante da contracultura. Fundou, em 1987, junto com o poeta Francisco Casas, o coletivo Yeguas del Apocalipsis, realizando performances críticas e provocadoras em lançamentos de livros e vernissages de exposições de arte em ações nas quais ficavam evidentes o ativismo da dupla em favor da diversidade sexual.
As crônicas publicadas neste volume cobrem mais de 20 anos da produção de Lemebel e nos revelam um escritor cujo estilo busca uma comunicação clara e direta com o seu leitor, mas ao mesmo tempo é rica no uso de metáforas e figuras retóricas, o que tem levado os críticos de sua obra a apontarem a presença do barroco como uma de suas características. Neste sentido, o prólogo do editor da coletânea é uma introdução muito bem conduzida, pois oferece ao leitor, sobretudo para quem está tomando contato pela primeira vez com os textos de Lemebel, um panorama da trajetória do autor aliado a uma análise perspicaz do seu estilo.
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Embora tenha debutado na arte literária como ficcionista, foi na crônica urbana que Lemebel consolidou sua poética construída a partir de uma narrativa poderosa e instintiva cuja principal arma é a capacidade de seduzir o leitor com uma escrita elegante, mas desprovida de hipocrisia e bom-mocismo. Artífice da palavra, Lemebel sabe que a linguagem não é inofensiva e que é por meio dela que se estabelece o sentido das coisas e onde se definem as identidades e as estruturas de poder. Por isso subvertê-la e, por meio dela, dignificar o mundo marginal e denunciar a violência política e social imposta aos pobres e excluídos, é, sem dúvida, o principal objetivo de seus textos.
As crônicas constantes neste volume organizado por Echeverria são oriundas dos sete livros publicados por Lemebel, mas não obedecem a uma ordem cronológica. Elas foram publicadas também em jornais e revistas e lidas em programas radiofônicos. A partir delas temos um panorama da sociedade chilena, mas também fragmentos autobiográficos que nos dão uma ideia da potência criativa e irreverência de um autor que não tem medo de dizer o que é: “…Defendo o que sou/E não sou tão estranho/Fico puto com a injustiça/E desconfio dessa dança democrática/Mas não me venha falar de proletariado/Porque ser bicha e pobre é pior/Tem que ser ácido para aguentar… – Trecho do texto Manifesto (Falo pela minha diferença) lido por Lemebel pela primeira vez em um ato político em 1986.
