Pobres Criaturas
Yorgos Lanthimos
Poor Things, EUA, 2024. 2h21. Distribuição: Disney
Com Emma Stone, Willam Defoe e Mark Ruffalo
Dos mitos modernos da cultura popular, o Frankenstein é um dos que ainda assombram a imaginação de criadores e público, pois nos coloca diante do choque da indagação sobre o significado da vida. E mais ainda: estar vivo é ter vontade e desejos e lidar com eles?; ou a vida é predeterminada por uma força superior, de onde ela se origina? Podemos criar um outro ser vivo?
Pobres Criaturas, de Yorgos Lanthimos, indicado a 11 Oscar, é uma epopeia visual impressionante que tenta discutir essas questões, mas se apoia sobretudo na potência da experiência humana e todas as suas possibilidades. O resultado é um espetáculo fílmico, com um design de produção e fotografias bem cuidados, que conferem bastante personalidade à narrativa.
Emma Stone, que também é produtora do filme, interpreta Bella Baxter, uma jovem que foi “construída” por um médico controverso, ele próprio também uma espécie de Frankenstein moderno, em algum período da era vitoriana nos EUA. No início do filme, ela tem o corpo de uma jovem adulta, porém com um cérebro transplantado de um bebê. Vive com seu pai médico Dr. Godwin Baxter, interpretado por Willam Dafoe, cercada de quimeras e outros experimentos científicos malucos, como um ganso com cabeça de porco.
Godwin trata Bella com o carinho de um pai ao mesmo tempo em que mantém a curiosidade científica sobre sua criação. Para isso contrata Max (Ramy Youssef, excelente) um aluno seu da universidade de medicina para acompanhar a evolução de Bella como um ser humano. Mas tudo muda para quando ela conhece Duncan Wedderburn (Mark Ruffalo, em um das suas melhores interpretações), um advogado vigarista que a leva em uma viagem pelo mundo para viver as mais diferentes experiências.
E é aqui que o filme efetivamente se inicia, pois o prólogo de mostrar Bella e seu entorno como um golem moderno não é o cerne da história que Lanthimos tenta contar. É da interação de Bella com o mundo que passamos a nos deparar com questões que muitas vezes ignoramos, como convenções sociais, status e classe, dinheiro, e sobretudo, o sexo. Sem as amarras das convenções sociais, da vida em sociedade, Bella vive uma jornada de descobertas começando pelo seu corpo, das várias possibilidades de prazer, passando pelas interações com as outras pessoas e a descoberta do mundo em si, tudo de maneira bastante direta, pragmática.
Emma Stone tem um papel bem difícil, pois sua personagem é complexa e vive uma jornada longa de desenvolvimento. É impressionante como ela consegue ir dosando, pouco a pouco, essa evolução de Bella, de maneira muito orgânica, sem arroubos ou atalhos. É também um papel corajoso, se avaliarmos o puritanismo que domina a produção de Hollywood atual. Emma dá vazão à potência sexual de Bella em cenas sem pudor, das mais diferentes maneiras, repetidas vezes.
Encabeçado por filmes da Netflix, o cinema atual tem atenuado o sexo nas telas para mostrá-lo de maneira protocolar, asséptica. Uma pesquisa da Universidade da Califórnia, inclusive, apontou que a geração Z não gosta de ver cenas sexuais em séries e filmes. 47,5% de 1.500 entrevistados disseram que sexo não é necessário e 51% preferem ver relacionamentos platônicos ou amizades. Emma Stone conduz de maneira brilhante essa epopeia, criando uma interessante curva de aprendizado para sua personagem, colocando o sexo como um elemento de libertação, de empoderamento.
Além de Stone, o resto do elenco está incrivelmente sintonizado, o que nos coloca dentro desse universo com bastante imersão. Mark Ruffalo mostra talento para papeis de comédia com esse bon vivant elegante, que vai perdendo o juízo no relacionamento com Bella. Já Willam Dafoe, em uma interpretação mais contida, dá conta de mostrar afeto a partir de uma aura de austeridade. Tudo isso dentro de um cenário imaginativo, que traz referências do expressionismo alemão e dos primórdios do cinema, com seus cenários oníricos, propositadamente exagerados.
Yorgos Lanthimos e sua aposta no absurdo tem se mostrado uma adição interessante em Hollywood desde que passou a fazer filmes em inglês com O Lagosta (2015), em que pessoas vão para um retiro antes de se transformarem em animais. Em A Favorita (2018), onde iniciou sua amizade com Emma Stone, ele aposta no impacto visual para criar uma trama de época que namora com o nonsense. Pobres Criaturas é sua obra mais impactante até aqui, pois intensifica todos os elementos que vinham aparecendo de sua obra, como a fuga da realidade, os cenários absurdos e uma câmera que sempre tenta fugir do óbvio.
Em Pobres Criaturas, o gótico retrofuturista convive com o estilo ágil da comédia física, sempre com impacto visual, que é a chave para curtir o estilo do diretor. Se por um lado perdemos em nuance, por outros temos um diretor que busca saídas criativas em imagens que exploram diferentes possibilidades do cinema. O roteiro, assinado por Tony McNamara, se apoia no estilo do diretor para discutir o tema maior da vida e do livre-arbítrio de maneira complexa, mas sem perder de vista o estilo autoral de Lanthimos, que aqui une o fantástico com o horror e a ficção científica, com maestria.
Leia mais críticas
- “O Aprendiz”: Donald Trump e os fragmentos de uma vida sem escrúpulos
- “Emilia Pérez” mistura dramaticidade das novelas mexicanas à linguagem da música pop
- “Baby”: sobrevivência e afetos na noite queer paulistana
- “As Mulheres da Sacada”: fábula de horror feminista põe o dedo na ferida da misoginia
- “Betânia” alegra Festival do Rio com ode às raízes culturais do Maranhão