Marcos Vinícius Almeida, jornalista, escritor e mestre em Literatura é o autor de Pesadelo Tropical, romance que reinventa o Brasil Colônia como um território pós-apocalíptico, onde mercenários, justiceiros e indígenas disputam espaço em uma narrativa que lembra um “faroeste barroco”. Desenvolvido ao longo de sete anos, o livro parte da lenda mineira de Januário Garcia Leal, o Sete Orelhas, para explorar a violência como matriz da formação nacional.
“Pesadelo Tropical” mistura documentos reais, folclore e invenção para revelar as cicatrizes de um país nascido do extermínio. “Para os nativos, a Colônia não é o Novo Mundo: é o amanhecer depois do Apocalipse”, afirma o autor na abertura da obra, que questiona narrativas eurocêntricas sobre o passado brasileiro.
O processo criativo foi marcado por intensa pesquisa histórica e literária. Durante seu mestrado na PUC-SP (2016-2018), Almeida descobriu que a história do Sete Orelhas, originalmente publicada como folhetim em 1832 por Joaquim Norberto, foi um dos primeiros textos ficcionais da literatura brasileira. “Fiquei espantado ao perceber como a ficção havia se tornado ‘história’ — em São Bento Abade (MG), há três monumentos ao Januário Garcia, figura que talvez nunca tenha existido como a imaginamos”, revela o autor, que cresceu ouvindo versões da lenda em Luminárias (MG).
Almeida reconstruiu a trajetória ambígua da gangue dos Garcia, grupo criminoso que atuou na Comarca do Rio das Mortes no século XVIII. O enredo segue quatro mercenários da Coroa Portuguesa em missão para unir-se aos Guaicurus e destruir um refúgio de párias liderado pelo Sete Orelhas. “Juntei história e ficção para investigar como as lendas viram ‘fatos’”, explica.
O esfolamento — motivo central da vingança do Sete Orelhas — é explorado como símbolo da violência colonial. Almeida rastreou o tema desde Ovídio (nas Metamorfoses) até relatos bandeirantes, mostrando como a crueldade se repete na história. “A fazenda Tira Couro, em São Bento Abade, talvez leve o nome em ‘homenagem’ a esse crime”, observa. O romance incorpora fotografias, mapas e referências artísticas para criar uma narrativa fragmentada, onde passado e presente se confundem.

As influências do romance são tão diversas quanto sua estrutura inovadora. Almeida mescla referências ao faroeste de Cormac McCarthy (Meridiano de Sangue), à filosofia de Walter Benjamin e ao mito grego de Apolo e Mársias (das Metamorfoses de Ovídio), no qual um sátiro é esfolado vivo — cena que ecoa no crime que motiva a vingança do Sete Orelhas. “Investiguei o esfolamento desde os astecas até os bandeirantes, passando por mártires cristãos. A fazenda Tira Couro, em São Bento Abade, pode ter seu nome ligado a esses eventos brutais”, explica.
Com uma narrativa não linear que incorpora fotografias, mapas e intertextos, “Pesadelo Tropical” desafia convenções ao alternar entre o século XIX e reflexões contemporâneas sobre a memória. “Queria mostrar como o passado é uma construção tão aberta quanto o futuro”, afirma Almeida, que usou parte da bolsa da FAPESP para pesquisar em arquivos e locais ligados à lenda.


