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Paulo Bruscky, inquietação e memória

Paulo Bruscky revirou rapidamente uma pilha de objetos para mostrar uma pedrinha, aparentemente comum e sem nenhum atrativo evidente – ao menos não para meus olhos. Em seguida a colocou em outra pilha com outras pedras, de diferentes formatos e cores. “Eu vou andando pela rua e catando, o que acho interessante trago pra cá. Por vezes transformo em alguma outra coisa”. Um dos mais importantes artistas visuais contemporâneos e, certamente, um dos mais inventivos, Bruscky tem um espírito catalogador, arquivista. A existência das coisas em si, para ele, parece possuir um potencial criativo que passa despercebido para a maioria das pessoas. “Eu gosto de olhar para as coisas inúteis”, diz ele em uma manhã de sábado em seu ateliê, no bairro da Boa Vista, região central do Recife. “Os objetos ficam dormindo por aí até que mudam de lugar, se transformam.”

Essa sua vontade em registrar, guardar e organizar vem sendo parte importante de sua obra, que traz um debate aberto sobre memória, identidade e limites conceituais. É também um pioneiro nas artes multimídias, com suas reconhecidas experimentações em diversas plataformas, do super8 às maquinas Xerox, passando pela arte postal, da qual é um dos maiores expoentes no mundo.

É curioso notar que um dos artistas mais interessados na memória da vida e das coisas seja tão pouco documentado em seu estado natal – e até mesmo no Brasil. Desde que começou a vender suas obras, há sete anos, nenhum museu local adquiriu uma obra sua. Já no exterior, a sua presença se faz notar em respeitadas instituições, que incluem o Tate Modern, em Londres, o Museu d’Art Contemporani de Barcelona e o Guggenheim e MoMa, ambos em Nova York. Agora, neste mês de outubro, o Centro Georges Pompidou, em Paris, adquiriu um lote de cerca de 30 obras do artista pernambucano, uma das maiores aquisições de um artista vivo do Pompidou desde sua fundação, há 40 anos.

O centro hoje conta em seu acervo com trabalhos de nomes como Matisse, Miró, Kandinsky, Pablo Picasso e Jackson Pollock, entre outros.

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O artista em seu ateliê, na Boa Vista, centro do Recife. (Foto: Paulo Floro/O Grito!).

Bruscky ganha uma exposição retrospectiva com mais de 100 obras que abrangem diversas fases de sua carreira, como as artes postais, os poemas sonoros, videoartes e instalações, além de alguns registros de performances. A expo fica em um recém-inaugurado andar do Pompidou que traz destaques do acervo da instituição. A preparação para essa exposição demorou mais de cinco anos para ser concluída desde o convite até a montagem e seleção das obras. A exibição ao público começou nesta quinta (19) e vai até 19 de abril de 2018.

O convite se consolidou apenas no ano passado através de Catherine David, curadora do Museu Nacional de Arte Moderna, que fica no Pompidou. A seleção das obras foi feita por Bruscky e seus dois filhos, Yuri Bruscky (que também é músico) e Raíza Bruscky, designer especializada em expografia, que ficou encarregada da montagem. A exposição coletiva, batizada de “O Olho Escuta“, faz um amplo recorte da obra do artista pernambucano. Estão lá mais de 30 vídeos, registros de performances, publicações, colagens, ilustrações e instalações. “Também teremos uma seção chamada de ‘Diálogos’, onde trago correspondências que troquei com artistas como Ray Johnson (1927-1995), do grupo Fluxus e vários representantes do Grupo Gutai [do Japão]”, explica.

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Arte postal que estará exposta no Pompidou. (Divulgação).

Artista de espírito provocador, Bruscky levou para a retrospectiva imagens de sua performance batizada de “Arte Cemiterial”, onde encenou seu próprio cortejo funebre no início dos anos 1970. Também foi selecionada “O Méu Cérebro Sonha Assim” (1976), em que faz um registro encefalográfico de seu cérebro enquanto desenha, mostrando um vislumbre artístico de como funciona sua mente. Há também poemas sonoros, parte importante da obra do artista, bem como as artes postais e as colagens/xerografias.

O museu deu total liberdade para o artista e sua equipe, que puderam pensar detalhes das instalações e conceito final da exposição. É algo raro de se ver no mundo das artes, mas faz total sentido para um artista como Bruscky, que possui um olhar conceitual como poucos. “Fiquei muito feliz e gratificado com essa homenagem. Eu nunca fui um artista preocupado em estar na mídia, em vender obras a preços astronômicos. Sempre fiz minhas coisas com liberdade, sem esperar retorno financeiro”, diz. “Essa homenagem do Pompidou me deixa muito feliz”, conta.

O artista tem mais de 50 anos de carreira, mas vendeu sua primeira obra apenas há sete anos. Hoje, é representado pela galeria Nara Roesler, que divulga e comercializa seus trabalhos no mercado da arte. Em sua fala há um pesar de não conseguir esse reconhecimento em sua cidade natal, e mais ainda, em seu país. “Aqui no Brasil as coisas vem de fora para dentro, é uma pena. Eu lamento, afinal de contas é o meu país, mas não me preocupo muito com isso. Na verdade, fico feliz desse reconhecimento em vida, mas sei que minha obra é muito difícil”, diz.

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Uma garrafa de cana na homenagem de Bruscky a Vicente. (Divulgação).

Homenagem a Vicente

Admirador da obra de Vicente do Rêgo Monteiro (1899-1970), Paulo Bruscky presta uma homenagem ao conterrâneo na retrospectiva do Pompidou. A presença de Vicente é emblemática: o artista brasileiro viveu grande parte da sua vida entre Recife e Paris, cidades pelas quais declarou seu amor em diversas obras. Bruscky, um pernambucano homenageado na França, reconhece o pioneirismo do colega com uma sala com cerca de 40 obras na exposição. Entre elas estão caligramas, poemas tipográficos, bem como duas obras de Paulo Bruscky feitas em homenagem a Vicente.

Está presente na mostra a já icônica obra “Vicente do Rego Monteiro: Poeta, Tipógrafo e Pintor”, de 2004, que traz uma garrafa de cachaça e o livro com 25 caligramas de Monteiro organizados por Bruscky em 2002.  Tudo veio do acervo pessoal de Paulo, com exceção de duas pinturas, “A caçada”, de 1923 e “O Menino e os Bichos”, de 1925, que já faziam parte do acervo do Pompidou.

Para Bruscky, esta é uma oportunidade para os franceses conhecerem melhor o trabalho de Monteiro. “Apesar de ter vivido mais em Paris do que em Recife, não existem muitos registros dele por lá. Por isso, o Centro Pompidou ficou bem feliz com esse resgate”, diz Bruscky. “[Vicente] foi um dos nomes mais importantes da arte moderna mundial. Pioneiro em diversas áreas, entre elas a arte postal, conviveu com a nata da vanguarda, mas nunca teve uma grande homenagem, à altura de sua importância, em vida.”

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O caos acolhedor do artista. (Foto: Paulo Floro/O Grito!).

O ateliê vivo de Paulo Bruscky

Durante a entrevista é impossível ficar alheio ao modo como as coisas soam caóticas no ateliê do artista. Pilhas de papeis, pastas, obras de arte, anotações, objetos, restos de performances, fotografias, tudo parece ameaçar soterrar quem adentra o espaço. Mas, passado algum tempo, é possível perceber certa movimentação nesse local, como se existisse uma inquietação, quase vívida, entre autor e seus objetos estranhos, móveis antigos, eletrodomésticos, papéis, livros, discos, pastas classificadoras, estantes apinhadas, fitas. Um ferro de passar descansa em uma pilha. Uma caixa de correio antiga numa estante. Pedaços de madeira.

Localizado em uma casa de dois pavimentos, o ateliê de Paulo Bruscky fica na Boa Vista, um dos bairros mais antigos do Recife, hoje reduto boêmio alternativo. É lá onde ele organiza sua extensa obra e coleciona outros artistas, bem como documenta assuntos de todo tipo, com recortes de jornais, revistas, livros, além de coleções de áudios e vídeos. Uma coleção meticulosa que soa como uma persistência da memória, mas que, de maneira alguma soa memorialista. É como se tudo vivesse em diálogo, servindo tanto como inspiração como projetos artísticos em potencial, prontos para uma transformação. “Sempre digo que em outra vida devo ter sido arquivista”, diz Paulo enquanto mostra uma pilha de álbuns e revistas sobre a Jovem Guarda. “Eles quebraram uma estética dentro da música brasileira”. Mais adiante me mostra fichários com correspondências trocadas com artistas.

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A arte cemeterial: ele fez o próprio cortejo fúnebre. (Divulgação).

Entre as novas pastas do artista estão recortes de matérias sobre as censuras recentes envolvendo a arte brasileira, entre elas o fechamento da exposição do queermuseu, em Porto Alegre e os protestos por conta da performance La Bête, acusada de pedofilia. “Isto é algo mais sério do que as pessoas pensam”, reflete. “O Brasil nunca deixou de ser militarista. O que esperar de um país que sempre contou com militares no poder? Governos ditos de esquerda trabalhando em conjunto com fascistas?”, diz.

Desde os anos 1960 que Bruscky desafia o poder em suas obras, tendo combatido a ditadura militar, onde foi perseguido. “[Esses episódios de censura] me causam indignação, mas não surpresa”, diz. “O povo está sendo execrado deste país. Tudo está sendo vendido, destruído, os museus todos acabados, sem verba. Não existe política cultural, critérios de aquisição, nada”. E continua: “me diga qual é o plano cultural do Estado de Pernambuco? Não há.”

Do caos de seu ateliê, Paulo sonha com um projeto ousado que já está em vias de ser viabilizado. Batizado de Instituto Paulo Bruscky, o ateliê será reformado e abrigará inicialmente cerca de 35 mil itens que serão disponibilizados ao público. Com patrocínio do Itaú, a catalogação já teve início e deve durar 18 meses. São livros, obras de artistas do mundo inteiro, documentos, artes postais, trabalhos multimídia, filmes e fotografias que estão sendo organizadas e preparadas para serem expostas. “Estou muito empolgado com esse projeto. Já temos uma equipe pequena, mas muito capacitada, empenhada em disponibilizar tudo. Todo esse acervo também será posto online”, explica o artista.

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As invenções de Bruscky. (Divulgação).

Quando for inaugurado, o ateliê de Paulo Bruscky, agora reformulado como instituto, passará por uma transformação e deverá movimentar ainda mais o bairro. “Pensamos até em alugar ou reformar um outro espaço, mas decidi por fazer esse projeto aqui, no local onde trabalho e onde guardei minhas coleções”, diz Bruscky em meio a um tour por sua incrível coleção, que parece infindável.

O instituto também vai destacar um enorme acervo de obras e documentos sobre o Recife, colecionado por Bruscky desde os anos 1970. “Tenho todas as antologias feitas sobre a cidade até hoje”, orgulha-se. A relação do artista com a cidade é bastante conhecida em sua obra, que tem trabalhos provocativos onde a paisagem da cidade aparece como parte importante da obra. Uma das mais conhecidas traz um caixão com a inscrição “arte” jogado no rio Capibaribe. Em outra performance ele circula pelas ruas do centro com placas coladas ao corpo onde questiona “o que é a arte? para que serve?”.

“Somos um povo sem memória. Recife é uma cidade mal cuidada, mas muito linda, com personalidade”, diz. “Sem o Recife eu não seria o que eu sou.”

Paulo Bruscky no “L’oeil écoute” @ Centre Georges Pompidou.
Place George-Pompidou, 75004 Paris, França.

Veja mais obras da exposição:
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