Para Não Acabar Tão Cedo
Clarice Freire
Editora Record, 216 páginas, R$53,92 | 2024.
Imagine acordar em um corpo que, embora familiar, pertence a uma versão de si mesmo de décadas passadas. O espelho reflete uma imagem livre de cicatrizes e marcas do tempo, um rosto que evoca memórias de um passado distante. O que faria se partilhasse essa experiência única com alguém querido?
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Para alguns, essa premissa pode ser uma receita para o caos. Retornar ao passado, com todas as suas incertezas, pode não ser reconfortante. Para outros, é uma oportunidade rara de reviver momentos há muito perdidos – de enfrentar novamente o Tempo, força inevitável que nos guia e, na mesma proporção, nos escapa.
Para Não Acabar Tão Cedo, o primeiro romance de Clarice Freire, marca uma década de sua carreira literária. Na obra, acompanhamos as irmãs Lia e Augusta em uma narrativa conduzida pelo próprio Tempo – um narrador excêntrico que nos guia pelas aventuras dessas duas mulheres quando, subitamente, acordam em seus corpos de 50 anos atrás. A partir daí, inicia-se uma jornada de redescobertas e reflexões profundas.
Augusta, sempre tão resguardada no conforto de sua casa – um espaço que compartilha com a irmã –, entra em estado de choque ao se deparar, no espelho, com um corpo que há muito havia deixado de reconhecer. Inicialmente, acredita estar perdendo a sanidade, atribuindo a transformação aos efeitos colaterais de seus remédios. Lia, por outro lado, que há anos vive confinada a uma cama devido à progressão de sua doença, vê na situação uma janela de oportunidades.
Ao perceber que agora pode se levantar e andar sem qualquer dificuldade, a irmã mais jovem não hesita em sair de casa. Augusta, embora assustada e incrédula diante da absurda circunstância, reluta, mas acaba se juntando a Lia em um percurso repleto de memórias e emoções adormecidas. Assim, acompanhamos o processo junto ao Tempo, que entrega um pouco de si mesmo ao leitor.
Envolvemo-nos em uma melancolia simultaneamente bela e cruel, tecida nas memórias que esculpiram as vidas dessas duas mulheres. Em suas vivências, encontramos espelhos de nossos próprios caminhos. De maneira sutil e perspicaz, aceitamos o convite do Tempo para, através das experiências de Lia e Augusta, confrontar e abraçar nossas próprias cicatrizes.
Nas almas pesadas de memórias, Clarice Freire nos revela corpos preparados para uma existência que ainda está por se desdobrar. Ao longo de diversos momentos, ansiamos pela oportunidade de retornar ao passado, de proferir o que ficou por ser dito, de abraçar a vida com maior intensidade. É quase inevitável o desejo egoísta de reter o que já se foi.
Desejamos confrontar o Tempo, interrogá-lo sobre o porquê de tudo ser como é. Contudo, no fim, nada podemos fazer. O Tempo, que ao longo das vivências se revela vulnerável, é inescapável. Ele nos entrega ainda sua relação com o Amor e com a Morte. Ansiamos por compreender tudo, mesmo sabendo que a ausência de respostas faz parte do processo.
Lia e Augusta, com naturalidade, refletem sobre a vida que ainda têm pela frente. Compartilham um amor visceral, marcado por cicatrizes e esperanças. Discutem, frustram-se e deixam-se levar pelo caos daquele dia particular. Mas, acima de tudo, entregam-se uma à outra, abraçando a vulnerabilidade imposta pelo Tempo. É algo inerente ao vínculo entre irmãs.
Se eu fosse chão, seria estrada. Ficaria parado para os outros passarem por mim, em suas viagens. Talvez não me sentisse tão culpado por ser eu quem passa, quem não para, que não me retenho.
A reflexão sobre o que poderia ter sido vivido persiste. Lia, apesar de respeitar e admirar seu corpo marcado pelas vivências, reluta em imaginar-se novamente confinada à sua cama. Augusta, mesmo diante de sua insegurança em relação aos acontecimentos, vive um pouco mais intensamente ao lado de quem ama. Juntas, revivem memórias, compartilham uma refeição, contemplam as ondas do mar, discutem e confessam. Vivem como deve ser, aceitando o que foi.
O Tempo, que nutre um afeto especial pela dupla, testemunha o adeus de Lia. A mulher, que por tantos anos ouviu os sussurros de seu velho amigo, agora compartilha uma única realidade com ele. Unidos por um amor desprovido de angústias, Lia e o Tempo entrelaçam-se.
Parece injusto entregar alguém ao Tempo. Ver um amor partir para um lugar desconhecido é uma realidade carregada de dor para aqueles que permanecem. O Tempo, expressando sua frustração perante a Morte, intrigado pela situação, pede desculpas pela forma como a tratou. Ele, então, abraça o leitor.
Clarice Freire captura com precisão a essência do amor. Feito de lembranças, de apego ao que foi vivido e, sobretudo, de esperança pelo que está por vir, mesmo que essa nova realidade não inclua alguém querido. A autora nos convida a uma jornada pessoal.
Minhas palavras, como jornalista que redige esta resenha, são de gratidão a Clarice. Viver esta obra em meio a um luto recente foi uma oportunidade de enxergar o Tempo sob uma nova perspectiva – desta vez, mais gentil.
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