Misturar temas como feminismo, identidade de gênero e homofobia com histórias de romance açucarados da Itália renascentista não parece lá muito óbvio. Mas foi esse mix improvável o mote de Pele de Homem, HQ de Hubert e Zanzim lançado no ano passado pela editora Nemo.
A história acompanha a jovem Bianca, que deverá se casar com um homem escolhido por seus pais, sem nem mesmo conhecer o noivo. Antes da cerimônia, porém, lhe é revelado um segredo guardado por várias gerações de mulheres de sua família: ela poderá experimentar, por um breve período, uma “pele de homem”, que a fará magicamente viver como Lorenzo, desfrutando assim de todos os privilégios de ser um homem na sociedade.
Zanzim, um dos principais autores franceses da atualidade, veio ao Brasil para participar de lançamentos em São Paulo e em Brasília. Dono de um traço simples e dinâmico, seu trabalho em Pele de Homem conseguiu reproduzir com afinco os cenários italianos da Renascença de maneira imersiva. “Trabalhamos em representações com arquiteturas simples e nem sempre com proporções exatas e típicas do Renascimento”, disse ele em entrevista à Revista O Grito!. “A ideia era montar um cenário e depois ir reduzindo aos poucos até desaparecer, como no teatro.”
Tratar de temas contemporâneos em uma HQ de aventura e romance passada na Renascença também foi um desafio. A ideia partiu de Hubert, autor francês que morreu em 2020, depois das manifestações contra o casamento gay na França entre 2012 e 2013. “Queríamos que esta história, que se passa durante o Renascimento, ecoasse as questões de hoje: questões sobre gênero, tolerância, hipocrisia. O feminismo também está muito representado lá”, disse Zanzim.
O livro se tornou um sucesso na França, onde recebeu diversos prêmios e também em outros países. A HQ entrou na nossa lista de Melhores Quadrinhos de 2021 na segunda posição. “Acho que Hubert ficaria orgulhoso da mensagem que transmitiu”.
Leia a entrevista que fizemos com Zanzim.
Pode nos contar um pouco como chegou até você o projeto de Pele de Homem? Quais as primeiras impressões que você teve deste trabalho?
O projeto nasceu da raiva. Na época das manifestações contra o casamento gay na França por volta de 2012/2013, Hubert, que assumiu plenamente sua homossexualidade, sentiu-se ameaçado, ficou muito bravo e com medo. Ele sugeriu que eu fizesse uma tirinha chamada “Débaptiser-moi”, uma espécie de desabafo, um panfleto contra a igreja. Achei um pouco inútil e pedi a ele um tempo para pensar sobre isso.
Alguns meses depois, ele me contatou novamente e me disse que havia mudado tudo: seria um conto renascentista e me apresentou a história de Pele de Homem. Tudo era diferente, o projeto era bem menos frontal e a raiva um pouco mais digerida. Achei o projeto maravilhoso e solar!
Como foi trabalhar com Hubert neste quadrinho? Vocês já se conheciam e como foi realizar essa colaboração juntos?
Hubert e eu nos conhecemos desde nossos primórdios quando fizemos juntos nossa primeira tirinha “Les Yeux Verts”. Desde então trabalhamos sempre juntos e nos tornamos amigos. Na época do Pele de Homem, estávamos totalmente maduros em nosso trabalho e em nossa relação e então tudo fluiu muito bem.
Um dos temas que mais me chamam atenção neste quadrinho é o papel da empatia. Os personagens são colocados em situações que os tiram da zona de conforto, o que acaba levando-os a novos e inesperados rumos. Você acha que isso dialoga com temas atuais?
Queríamos que esta história, que se passa durante o Renascimento, ecoasse as questões de hoje: questões sobre gênero, tolerância, hipocrisia… o feminismo também está muito representado lá.
Pele de Homem traz uma reconstituição bem interessante e imersiva de certo período histórico. Como foi o seu processo de pesquisa para recriar esses ambientes?
Hubert, como em cada uma de nossas colaborações, me deu muita documentação e eu devorei tudo para me impregnar do Renascimento e depois deixei tudo de lado. Fiquei apenas com o essencial, o que fica na minha memória e fiz uma mistura entre o ontem e o hoje. Trabalhamos em representações com arquiteturas simples e nem sempre com proporções exatas e típicas do Renascimento. A ideia era montar um cenário e depois ir reduzindo aos poucos até desaparecer, como no teatro.
Apesar de se passar em uma época muito antiga, o livro trata de temas contemporâneos. Como foi lidar com essa dualidade?
Trata-se de construir pontes entre os dois períodos sem que seja algo muito grosseiro. Por exemplo, para a cena da taverna “Gato Vesgo”, faço questão de fazer uma decoração antiga, mas ao mesmo tempo que pareça uma boate moderna. Os cenários são muito próximos do mundo do teatro, em algum momento você não sabe realmente onde está. Por fim, é o leitor que faz o seu próprio caminho e que constrói as pontes com os dias atuais através da imaginação.
A partir do roteiro de Hubert, a HQ aborda questiona os papéis de gênero de maneira muito inteligente. Pode nos contar como foi dar vida aos personagens principais (e seus alter-egos)?
Essa experiência foi muito perturbadora! Cada vez que desenho um personagem, coloco-me no lugar dele e ali é, de fato, uma mudança permanente de pele. Esse crossdressing incessante foi muito prazeroso, me lembrou muito o filme Tootsie.
Imaginamos Lorenzo com uma morfologia parecida com a Bianca como se fossem gêmeos e tivemos que explorar o lado andrógino do personagem. Bianca tem a pele branca, Lorenzo um tom mais bronzeado, mas a cor dos olhos permanece inalterada.
Você e Hubert tinham ideia da repercussão desse álbum? O que acharam de toda a repercussão. Aqui no Brasil, o livro também fez muito sucesso.
Achávamos que este álbum seria notado pela crítica, mas nunca imaginávamos que teria tanto sucesso. É um álbum que ultrapassou o círculo dos quadrinhos, pois se impôs às livrarias em geral e aos leitores que nunca leram quadrinhos.
Hubert (que morreu antes do lançamento do livro) infelizmente não pôde saborear esse sucesso e cada vez que recebíamos um prêmio era um poderoso incentivo emocional, pois eu tinha que carregar o bebê sozinho. Acho que ele ficaria orgulhoso da mensagem que transmitiu.
Como começou sua relação com os quadrinhos? O que há de mais extraordinário em trabalhar com essa arte?
Eu sempre li quadrinhos desde criança – a HQ franco-belga em particular. Mais tarde, senti o desejo de fazer meus próprios quadrinhos, de querer devolver aos outros o prazer que senti nas minhas primeiras leituras. É uma arte com infinitas possibilidades e “efeitos especiais” baratos (risos).
Por fim, o que você conhece da HQ brasileira? Quais suas expectativas sobre a vinda ao Brasil?
Não conheço muito os quadrinhos brasileiros, mas vi que o brasileiro Marcello Quintanilha venceu o Fauve D’or (maior prêmio do Festival de Angoulême) e conheci brevemente Fabio Moon na França. O Brasil é para mim um destino dos sonhos, espero uma recepção calorosa, sol e bossa nova na minha cabeça.
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