Negar a identidade de alguém talvez seja uma das maiores violências que alguém pode ser submetido. A nova HQ de Mário Cesar, Bendita Cura, aborda as terapias de conversão, um combo perigoso de fanatismo religioso e homofobia que atinge jovens e adultos no mundo todo. O gibi começou na internet e ganhou versão impressa este mês após uma campanha de financiamento coletivo.
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Cesar ficou muito conhecido por seus quadrinhos sobre questões LGBTs, mas esse tema chegou apenas no quarto número de sua série EntreQuadros. Mas sua sensibilidade em tratar o tema e a complexidade e nuance com que constrói os personagens fizeram sua obra ser recebida como um conforto por leitores bastante carentes de representação de outras sexualidades.
Mostrar LGBTs nos quadrinhos também serviu como parte do processo de Cesar em se assumir. “Foi com a publicação do Ciranda da Solidão em 2013 que assumi publicamente minha homossexualidade. Foi libertador”, conta. “Eu tinha um medo enorme de não ter público pra material assim porque quadrinhos eram uma coisa muito de meninos heterossexuais”.
O autor acredita que quadrinhos como Bendita Cura podem ajudar na luta contra a homofobia. “Preconceito é ignorância. E ignorância se combate informando e educando as pessoas. Os quadrinhos, como toda forma de arte, tem poder de esclarecer, educar e informar”, diz.
Batemos um papo com Mario Cesar sobre a produção dessa HQ, a representação LGBT nas HQs brasileiras e sua educação queer nos quadrinhos e outras artes.
Sua carreira como quadrinista fala muito da experiência das pessoas LGBT, abordando diversos temas e tipos diferentes de personagens. Como se sente levando para os quadrinhos parte dessas vivências?
Meus quadrinhos falam sobre o cotidiano. Então, cedo ou tarde, eu abordaria questões LGBTs, pois este é um universo em que estou inserido. Mas demorou para eu criar coragem e me sentir maduro e bem resolvido o suficiente para abordar isso no meu trabalho. Eu já tinha 31 anos quando publiquei meu primeiro quadrinho com essa temática. Foi só na quarta edição da minha série EntreQuadros que comecei a falar disso. Inclusive foi com a publicação do Ciranda da Solidão em 2013 que assumi publicamente minha homossexualidade. Foi libertador.
Foi uma sensação de ter tirado um sapato apertado que estava calçando há muito tempo. Eu tinha um medo enorme de não ter público pra material assim porque quadrinhos eram uma coisa muito de meninos heterossexuais, mas a recepção foi muito melhor do que eu esperava. E fico feliz de ver as pessoas se emocionando e se identificando com as histórias que estou contando.
Como você chegou ao Acácio, personagem de Bendita Cura? Você teve contato com pessoas que passaram por terapias de conversão?
Eu tive a ideia para a história quando o Deputado Marco Feliciano assumiu a Comissão de Direitos Humanos e Minorias da Câmara dos Deputados em 2013 e um deputado tentou aprovar um projeto para liberar terapias de reversão sexual que há muito tempo já haviam sido proibidas por conselhos de psicologia. Comecei a pesquisar sobre o assunto e me deparei com histórias terríveis e fui montando o roteiro a partir dessa pesquisa. Tive contato com pessoas que passaram por casos parecidos depois de ter publicado a HQ na internet, antes disso foi só pesquisa.
Como foi a experiência de fazer a HQ online antes da versão impressa? Como foi a reação dos leitores em relação ao tema?
Eu decidi publicar on-line porque este tema voltou a ser debatido quando um juiz de Brasília decidiu liberar estes tratamentos em 2017 e as questões que abordo na HQ precisam ser esclarecidas para a maior quantidade de pessoas possível. Livro nem todo mundo tem acesso e a com a internet posso me comunicar com um público maior. A experiência tem sido ótima.
As pessoas estão respondendo muito bem ao quadrinho e tenho recebido muitos relatos de pessoas se identificando com as situações pela qual o Acácio passa. E leitores tanto daqui do Brasil quanto do exterior, pois estou publicando em inglês também. Um leitor que mora na Coreia do Sul criou uma conta no Twitter só para me agradecer pela história. Me emocionei tanto com isso que até inclui o tweet dele na contracapa do livro.
O Brasil avançou bastante em relação a conquistas LGBTs, mas por outro lado sentimos ataques à liberdade de existir, como mostram as taxas de mortes, os episódios de homofobia, etc. O que você sente em relação a isso?
Eu me sinto muito apreensivo e esperançoso ao mesmo tempo. Estamos avançando nessas questões LGBTs, temos mais lugar de fala na mídia, produtos de entretenimento de massa como as novelas já abordam essas questões de orientação sexual e identidade de gênero, temos uma drag queen como uma das maiores estrelas da música, temos bons quadrinhos, filmes, livros e peças de teatro com essa temática chegando aos cinemas, mas ainda vivemos em um país extremamente hostil a LGBTs. Temos o maior número de mortes registradas provocadas por ódio e preconceito no mundo.
E temos que frisar uma coisa: conquistamos muitas coisas como o casamento homoafetivo e registro de nome social em cartório, mas NENHUMA destas conquistas veio pelo legislativo. Todas nossas conquistas vieram por meio de decisões judiciais ou atos do executivo. Uma vitória de algum candidato conservador este ano para a presidência com um congresso retrógrado como o atual pode ser desastroso e derrubar muitas dessas conquistas.
Você acredita que os quadrinhos possam contribuir para uma sociedade menos homofóbica e machista?
Sem sombra de dúvida. Preconceito é ignorância. E ignorância se combate informando e educando as pessoas. Os quadrinhos, como toda forma de arte, tem poder de esclarecer, educar e informar. Eu já tive um retorno muito bacana uma vez de um outro quadrinista heterossexual que fazia uns quadrinhos com conteúdo bem machista e me disse ter entendido melhor as questões sobre homossexualidade depois de ter lido o Ciranda da Solidão.
Como quadrinista que sempre representou gays, lésbicas e trans em seus trabalhos, você já sentiu algum tipo de preconceito dentro do meio?
Eu sempre tento me cercar só de pessoas bacanas e esclarecidas, mas já senti sim. Há muitos quadrinistas machistas. Nunca foi ofendido ao vivo diretamente, mas a gente acaba ouvindo uma piadinha (às vezes inocente, às vezes maldosa mesmo) aqui e outra ali. Já em grupos e redes sociais na internet sempre aparecem alguns que ficam tirando sarro, reclamando ou desmerecendo o trabalho e alguns começam a discutir e tem uns que por mais que se tente pacientemente explicar, parecem não querer ouvir. Em feiras e eventos quase sempre tem alguém que torce o nariz, algum pai que fica preocupado e puxa o filho quando vê o conteúdo. No último FIQ! em Belo Horizonte, foi o primeiro evento em que não presenciei nenhuma situação desse tipo.
Aliás, como você enxerga a representação LGBT no quadrinho BR?
É visível como está aparecendo mais e mais autores assumidamente LGBTs. E isso é maravilhoso. Há uns anos atrás acho que só tinha eu, a Laerte e a Katita falando abertamente dessas questões nos quadrinhos por aqui. Agora eu nem consigo passar em todas as mesas de autores LGBTs nos eventos de tantos novos nomes que tem surgido. Estamos avançando muito e tem muito mais meninas fazendo quadrinhos. Quadrinhos deixou de ser coisa só de menino branco e heterossexual.
Quais são suas maiores influências (seja quadrinhos ou outras mídias)?
Dos quadrinhos: Will Eisner, Laerte, Gilbert Hernandez, Jeff Smith, Craig Thompson, Alison Bechdel, Art Spielgelman, Neil Gaiman, Alan Moore, Fábio Moon e Gabriel Bá, David Mazzucheli.
Do cinema: Woody Allen, Wong Kar Wai, Charlie Kaufman, Wes Anderson, Paul Thomas Anderson, Laís Bodanzky, Karim Aïnouz.
Da literatura: O. Henry, Caio Fernando Abreu, Mario Vargas Llosa, Richard Yates, Jonathan Safran Foer, Daniel Galera
Você sempre teve contato com a cultura LGBT na arte? Qual sua primeira experiência com a cena gay?
Nem sempre. Acho que só depois de adulto mesmo. Quando eu era mais jovem na televisão, no cinema e nos quadrinhos só tinha personagens LGBTs que eram alívio cômico e quase sempre eles eram o motivo da piada. Se ria deles e não com eles. Na adolescência minha referência era X-Men que tem um apelo muito forte para qualquer minoria marginalizada, ali foi a primeira vez que me senti representado de alguma forma. E lembro também que na novela Tieta teve uma cena incrível em que ela discursa a favor dos gays, mas eram coisas raras. Quem falava mais abertamente disso eram cantores como Madonna, Cazuza, Ney Matogrosso, RuPaul, Rita Lee e Christina Aguilera. Os primeiros personagem LGBTs bacanas que tive contato nos quadrinhos foram o Israel do Love & Rockets e os personagens LGBTs do Sandman do Neil Gaiman.
Qual a lembrança mais remota de você querer trabalhar com quadrinhos? E como você avalia seu percurso até aqui?
Desde pequeno eu desenhava e cheguei a fazer uns livretos ilustrados quando era criança. Sempre quis trabalhar com quadrinhos, mas só criei coragem pra fazer quadrinhos com meus vinte e poucos anos no final da faculdade de design gráfico. Pra mim era um terreno sagrado e não achava que seria capaz de fazer algo que tivesse algum valor, mas a paixão falou mais alto e acabei seguindo por este caminho. Eu fico feliz de ver minha evolução como autor e sinto muito orgulho do que já produzi.
Agora cada trabalho é uma luta diferente e o mercado está sempre mudando. Tenho que me adaptar sempre e ver qual é a melhor forma de publicar cada trabalho. Antes a dificuldade era achar uma editora pra publicar meu material, hoje a autopublicação pode compensar mais do que ser publicado por editora e muitas vezes se vende mais em eventos do que em livrarias. É sempre um desafio.
Em que você está trabalhando nesse momento? O que veremos pós-Bendita Cura?
Agora estou trabalhando na segunda e última parte do Bendita Cura. Além disso, escrevi um roteiro de um suspense político chamado Votos vencidos que acompanha os bastidores de uma campanha eleitoral que será desenhado pelo André Freitas e colorido pelo Omar Vinõle. Também vou desenhar uma história de 20 páginas para uma HQ chamada Vida Selvagem com roteiro do Felipe Menduni e arte minha, do André Freitas e do Michel Ramalho.
Compre Bendita Cura (e outras HQs do autor) na sua loja virtual. O gibi também está sendo vendido na Ugra, em SP. No site dele tem seus outros trabalhos.