O Último Azul, de Gabriel Mascaro, abre o Festival de Cinema de Gramado nesta sexta (15), iniciando sua trajetória nas telas brasileiras depois de ganhar o Urso de Prata no Festival de Berlim e o prêmio de Melhor Filme Íbero-Americano do Festival de Guadalajara. A história de uma mulher septuagenária, vivida de forma magistral pela atriz Denise Weinberg, que se aventura pela Amazônia, arrancou aplausos da crítica internacional e tem despertado empatia dos espectadores pela forma delicada e positiva com que aborda o corpo idoso.
O filme subverte o gênero coming of age e mostra que a velhice pode ser um momento de libertação e de despertar para o novo. Mascaro buscou inspiração em sua própria avó, que aos 80 anos ressignificou o luto ao começar a pintar. “Essa memória afetiva me fez pensar em uma personagem que aposta na vida em vez de um corpo idoso preso ao passado”, diz o diretor. “Ao corpo idoso não é permitido a rebeldia, a transgressão. A sociedade torce para o jovem ganhar o mundo. Para os idosos é o contrário. A gente torce para ele não sair de casa, para ele ficar domesticado e não cometer loucuras.”
A produção vem fazendo sucesso pelos festivais ao redor do mundo e se insere dentro de um contexto de repercussão positiva do cinema brasileiro. O filme traz ainda no elenco nomes como Rodrigo Santoro, Miriam Socarrás e Adanilo. A estreia comercial nos cinemas de todo o Brasil acontece no dia 28 de agosto.
Conversamos com Mascaro e ele conta um pouco da longa trajetória de construção de uma obra marcante do cinema brasileiro contemporâneo.
O Grito! – Como surgiu a ideia de fazer um filme com a velhice como tema?
Mascaro – Em Boi Neon eu fiz uma investigação sobre o corpo masculino num contexto de transformação econômica em larga escala de uma região, vendo como isso afeta e impacta a transformação do desejo desse personagem masculino no imaginário que a gente tinha. Eu quis investigar esse tema do masculino no Agreste e no Sertão nordestino. E, naquele momento, quando eu acabei de fazer o filme, eu pensei: eu poderia agora fazer uma investigação sobre o corpo que envelhece, o corpo idoso.
Existe algum personagem real na fonte dessa ideia?
Sim, ela foi muito inspirada em minha avó. Aos 80 anos, quando meu avô morreu, ela começou a pintar. E a gente nunca teve uma tradição de artistas na família. Somos uma família de classe média baixa, meu avô era taxista, minha mãe professora de escola pública e morávamos todos juntos no bairro do Cordeiro [Zona Oeste do Recife]. E aquilo foi muito interessante ver minha avó, do nada, começar a pintar e com um certo talento. Quando todo mundo imaginou que ela entraria num luto profundo, ela ressignificou a vida e teve uma velhice muito mais altiva.
E como esse episódio de sua vida privada ganhou a dimensão universal que vemos em O Último Azul?
Aquela utopia do desejo de minha avó aos 80 me impressionou muito. Na minha casa eu convivi bastante com pessoas envelhecendo, mas quando comecei a investigar o tema vi que era muito difícil encontrar um corpo idoso como referência e com um sentimento positivo do envelhecer. Existem poucos filmes sobre o corpo idoso e, em geral, trazem protagonistas sempre em conflitos existenciais com a finitude, a iminência da morte, como é o caso de Amor, de Michael Haneke. Ou então é um corpo que já não pertence mais ao progresso. É um corpo que ficou para trás. É o corpo da memória, da nostalgia de um tempo que já passou. Ou um corpo que, idealisticamente, guarda as memórias do passado da família. Então essa memória afetiva de minha avó me fez pensar em uma personagem que aposta na vida em vez de um corpo idoso preso ao passado. Pensei nele como um lugar de resistência.
Existem poucos filmes sobre o corpo idoso e, em geral, os protagonistas estão sempre em conflitos existenciais com a finitude, a iminência da morte. Ou então é um corpo que já não pertence mais ao progresso, que ficou para trás. É sempre o corpo da memória, da nostalgia de um tempo que já passou. Ou um corpo que, idealisticamente, guarda as memórias do passado da família.
Gabriel Mascaro
Quanto tempo você levou para escrever o roteiro?
Foram dez anos desenvolvendo esse projeto para superar a falta de referências e encontrar dentro de mim algo potente que eu pudesse desenvolver. E foi aí que eu comecei a misturar distopia com algo de fantasia, algo de jornada, de aventura, de road movie, algo de boat movie, como também a ideia de subverter o gênero coming of age.
Foi intrigante, politicamente, para mim, pensar: “como é que eu posso fazer isso quando o cinema autoriza apenas o corpo jovem a ganhar vida?”. Ao corpo idoso não é permitido a rebeldia, a transgressão. A sociedade torce para o jovem ganhar o mundo. Para os idosos é o contrário. A gente torce para ele não sair de casa, para ele ficar domesticado e não cometer loucuras. E eu só consegui entender isso depois de oito anos. Aí chegou Tibério Azul e passamos mais dois anos trabalhando no roteiro.

E qual foi a principal mudança depois desses anos todos?
No início existia um núcleo familiar e nesse contexto se espera que o idoso seja também um porto seguro e não um corpo rebelde, alguém que enfrente o sistema estabelecido. E todo mundo que eu pedia para ler o roteiro, ninguém autorizava aquele corpo idoso feminino a partir em uma jornada. Ela era sempre recriminada de estar deixando o neto para trás, não cumprir os deveres de uma avó. Então decidimos tirar ela desse núcleo e colocá-la morando sozinha, foi uma forma de fazer o espectador criar empatia com a personagem e aceitar sua autonomia e o seu desejo de ser livre.
A trama se passa na Amazônia. Essa foi a primeira escolha para ambientar a história?
No início, não. Mas a partir de um certo momento percebi que seria importante que a personagem realmente se embrenhasse na jornada, sem dispersão. A própria história foi nos levando para a Amazônia, a partir do encontro de Teresa (Denise Weinberg) com o barqueiro Cadu (Rodrigo Santoro) e a descoberta da experiência lisérgica com o caracol da baba azul. Essas experiências de muita intensidade pediam um local onde se pudesse ficar isolado e não ser encontrado.
Mas percebe-se no filme um olhar diferente sobre a Amazônia, um olhar poético da natureza e ao mesmo tempo futurista…
Exatamente. Eu parto da ideia de que uma sociedade em desenvolvimento, em nome da produtividade, isola os corpos idosos. Então eu comecei a olhar para a Amazônia como uma Amazônia produtiva. Como é que eu poderia criar um descentramento dessa ideia que a gente tem da Amazônia idealizada, da preservação para essa Amazônia que produz? Então o filme começa num frigorífico de jacarés.

E tem frigorífico de jacarés na Amazônia?
Não. O frigorífico foi filmado no Pantanal. Mas essa imagem é útil para nos levar a olhar para a Amazônia que está vivendo hoje nessa contradição de um capitalismo 2.0, que está ressignificando também o ideário de preservação da fauna, da flora. E aí foi interessante para mim pensar uma Amazônia no futuro onde em vez de carros voadores e coisas muito high-tech eu pudesse falar sobre mudança de comportamento, sobre uma sociedade que olha para esse jacaré com normalidade e que isola idosos com normalidade, olhar para uma mudança de comportamento cultural e na relação de violência com o corpo.
A trama de O Último Azul sugere que estamos no futuro, e a narrativa e a mise-en-scène são bem convincentes nesse sentido. Como foi conceber essa espacialidade distópica num ambiente que nos remete todo o tempo a uma nostalgia da natureza?
A gente tem uma ideia de que distopia é futuro. E eu queria criar um deslocamento espacial e temporal. O filme, na verdade, poderia ser no passado. Poderia ser um filme de época. Não tem nenhuma tecnologia que aparece no filme que não exista hoje. Então o filme brinca um pouco com esse espaço-tempo. E isso também cria uma aproximação com o espectador, porque ele ri do deslocamento do estado do mundo.
Então dá uma ambivalência muito gostosa em quem assiste, porque tem humor, tem deslocamento de realidade. Você percebe que tem algo absurdo ali, mas é tão pé no chão que você tem um sentimento que poderia ser real, que aquilo aconteceria numa sociedade como a retratada no filme, com um governo focado no desenvolvimento social atrelado ao econômico.
Aqui você toca numa questão que eu gostaria de aprofundar. A colônia para idosos no filme é um programa social obrigatório que leva pessoas a partir dos 75 anos para um local onde supostamente eles serão acolhidos e terão um tratamento digno na sua velhice. E a personagem Teresa se recusa a ir para a colônia. No contexto atual do Brasil em que programas sociais voltados para as minorias, para as crianças, os idosos, etc são tão importantes, seu filme, portanto, não poderia soar como uma crítica a essas políticas públicas? Ou ele é uma crítica ou um questionamento sobre qualquer tipo de política social que não leva em consideração, digamos, os desejos de cada indivíduo?
É mais sobre isso. Na verdade, é mais do que um desejo concreto de crítica a um regime específico. Eu acho que o filme constrói a ideia de um regime muito difuso. Um governo populista, desenvolvimentista, de grande controle social, mas também de feição militar. Não é sobre o nosso governo, é uma alegoria.

As cenas dos velhos sendo levados para as colônias me lembraram imagens do nazismo alemão deportando os presos para os campos de concentração.
O filme é uma reflexão sobre uma política de Estado que isola os idosos. Elege o idoso como antagonista do sistema produtivo. Então, a crítica é contra um sistema produtivista que isola o sujeito dos seus desejos, em especial, isola o desejo do idoso. Ele aponta também para as pequenas violências que se cometem contra eles. Com esse filme, eu não tento fazer uma tese sociológica sobre o mundo ao qual eu acredito. É mais sobre a gente se apropriar desse regime simbólico aqui para refletir sobre o nosso cotidiano. Como é que lidamos com os nossos idosos? Então, é um filme sobre direito de escolha e direito do idoso desejar.
Se a rebeldia da personagem fosse ela se contrapondo à intenção da família em colocá-la num asilo privado em vez de uma instituição governamental, você acha que a história perderia sua força?
Sim, iriam dizer que ela deixou a filha, deixou o neto, deixou a família para trás, fariam julgamentos, diriam: velha safada. Precisamos que os mais jovens percebam que um dia eles também vão envelhecer e que torcemos para esse corpo se transformar do mesmo jeito que a gente assiste a um filme juvenil com jovens deixando a escola e torce para que eles tenham uma puta aventura porque eles vão ser adultos. Então é olhar para o corpo idoso como um momento de uma nova ponte de experiência possível.
Você fez uma pesquisa aprofundada sobre a Amazônia antes de filmar?
Quando eu me formei, eu fui trabalhar com o Vincent Carelli no Vídeo nas Aldeias. Então eu viajei muito com o Carelli na região e as viagens que fiz com ele estavam na memória na hora de escrever o roteiro.
Existe um caramujo da baba azul na Amazônia?
Não. Eu me inspirei um pouco nas lendas que existem na Amazônia, mas eu tentei deliberadamente não usar nenhuma, porque eu acho que isso poderia mexer com algo que é muito próprio da cultura de algum povo. Eu não queria banalizar isso no filme, não queria usar nada que pudesse ser objeto sagrado para alguma tribo, porque o contexto do uso do caramujo é muito específico. É alguém ver o seu futuro, sem ser em um ato ritualístico. E pode ver que não tem indígenas no filme. Você tem corpos ribeirinhos, lidando com as contradições da Amazônia contemporânea.
Mário de Andrade faz isso no livro O Turista Aprendiz, sobre a viagem que ele fez pela Amazônia. Ele relatou acontecimentos reais, mas também inventou coisas. E no seu filme, os locais citados existem realmente?
Nenhum. Os nomes das cidades são todos inventados. Tudo é ficção. A ideia foi não mexer com nenhum nome real para não criar uma afiliação etnográfica e realista. Não queria que a gente ficasse fazendo atualizações concretas. É um filme muito fantástico. A personagem Roberta (Miriam Socarrás), uma mulher de 85 anos, por exemplo, aparece conduzindo um grande barco quase como uma nave espacial.
São essas personagens meio fantásticas que definem o percurso de Teresa. Tem o barqueiro Cadu, interpretado por Rodrigo Santoro, o rapaz do ultraleve, Roberta… o que cada um representa no seu processo de libertação?
O importante para mim, desde o início, era deixar claro que esse não seria um filme sobre lisergia, portanto não é um filme sobre uma idosa que viveu os anos 1960, a cultura hippie, e está muito livre. Seria uma personagem com predisposição para essa jornada lisérgica de experimentar as coisas, experimentar a sexualidade e não era o nosso caso. A gente queria fazer ao contrário.
Teresa começa a história como uma pessoa conservadora. Ela não é anti-sistema e está disposta a esperar o tempo dela ir para a colônia. Um engano, porém, a obriga a entrar imediatamente no programa do governo. Aí ela fala: opa! eu tenho algumas coisas que ainda quero fazer. Isto cria uma pequena reação. Ela quer voar de avião antes de se entregar. Ela então foge em busca desse voo, mas uma série de conhecimentos vai levá-la a aprender a voar muito mais alto do que ela imaginava ser capaz.
Com um dinheiro que ela tinha guardado, Teresa parte para realizar seu sonho. Primeiro, ela encontra o barqueiro que lhe apresenta o caramujo que tem o poder de revelar o futuro. Em seguida o rapaz dono de um ultraleve que lhe faz ver a necessidade de correr riscos para alcançar seus objetivos e, por fim, a pastora comerciante de Bíblias digitais.
A crítica é contra um sistema produtivista que isola o sujeito dos seus desejos, em especial, isola o desejo do idoso. E aponta também para as pequenas violências que se cometem contra eles.
Gabriel Mascaro
A personagem da pastora que percorre os rios em um barco vendendo Bíblias me intrigou bastante.
Acho que o contemporâneo brasileiro tende a criar personagens de muitos heróis, sabe? Personagens que não erram e não falham. Eu resolvi criar uma mulher que também faz coisas erradas, é truqueira, e nós podemos gostar dela ou não, ao mesmo tempo. Mas para o contexto do filme, encontrar a vendedora de Bíblia é uma ironia do destino. Ninguém imagina que Teresa vai encontrar a força que precisa em um corpo idoso e rebelde, uma mulher mais velha do que ela, com 85 anos de idade, toda truqueira, toda cheia de esquema. Com Cadu ela já tinha aprendido como provar uma coisa que a natureza oferece, algo que não é você quem escolhe e por isso tem que aproveitar quando aparece. Eu quis mostrar esse olhar sobre o corpo idoso que deseja, o corpo idoso feminino que se conecta com outro idoso também de uma maneira quase queer.
E que vivem a alegria de estarem juntas, lidando com esse desejo sem uma identidade muito clara, porque, morando naquele lugar, esse debate identitário talvez nem tenha chegado para elas, mas elas estão vivendo isso e eu acho muito importante olhar para esse sentimento e assegurar um certo lugar de desejo e de experiência transgressora, dissidente ou não normativa. Não é só a consciência que permite vivenciar algo tão intenso, tão forte e libertador.
E como você pensou a fotografia que, particularmente, eu gostei muito?
Enquanto formato, tentamos evitar um pouco a sedução da Amazônia pictorialista, do formato com lentes scope, cinemascope, para evitar essa fuga do olhar para o belo. A gente não queria cair no lugar comum da Amazônia bela de forma gratuita nem entrar pelo exótico, mas entrar pelo personagem. É um estudo do tempo, do envelhecer, então era importante estar com o enquadramento no corpo.
Assim optamos pelo formato 4:3, mais quadrado do que o normal. E a matiz de cor, buscamos emular uns ruídos, umas falhas de negativo que quando a emoção batia no alto se gerava uma luz vermelha, estourada. Então tem muita parte de estouro na floresta, com uns pigmentos vermelhos criando um deslocamento espaço-temporal de modo a apontar também para o passado, para não ficar uma coisa só futurista. Queríamos uma imagem que denotasse a ideia de tempo suspenso. Então brincar com tecnologias meio lá, meio cá foi muito importante, inclusive com a emoção. A ideia de uma fotografia em tom esverdeado e também que se conectasse com a fotografia dos anos 1970/80.
Como você está percebendo a boa recepção internacional do filme?
Nas primeiras críticas que saíram ainda no Festival de Berlim, na Hollywood Reporter e na Variety, falaram muito do coming of late age o despertar na idade madura. Acho que todos perceberam, tanto a crítica quanto o espectador comum, que o filme tem um frescor. Os críticos também por perceberem, de maneira mais consciente, a abordagem mais original do tema, preenchendo essa lacuna do cinema que não costuma abordar o corpo idoso. Tem ainda a empatia direta com essa personagem mulher, idosa, em uma distopia tropical, amazônica, delirante e isso tem sido muito bonito.
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