Democracia sob ameaça: como tudo pode dar em merda
Protestos crescem, perdem o controle e assumem posturas conservadoras como fim dos partidos. Dilma reagiu, mas são necessárias medidas concretas
Por Tiago Negreiros
Uma das palavras mais recorrentes no Facebook durante a tarde e a noite de protestos em todo o Brasil, na última quinta-feira (20), era de que o “gigante” havia acordado. Fotos das multidões em várias cidades eram compartilhadas com orgulho e rasgados elogios. Nas ruas as pessoas seguravam seus cartazes e exigiam o que bem entendesse. O gigante foi cada vez mais se avolumando, elogios como “lindo” foram ficando para trás ao ponto da situação por muito pouco não sair completamente do controle. A falta de foco aliada a ausência de organização favoreceram oportunistas e conservadores dominarem o propósito do protesto. Para esfriar os ânimos, a presidente Dilma Rousseff fez um pronunciamento prometendo diversas ações, mas, para surtir efeito, algumas deverão se tornar reais o quanto antes.
Leia Mais: Protestos
7 razões para a Copa das Manifestações
Quadrinistas falam sobre os protestos
Em SP, sem polícia, sem violência
Pessoas estão nas ruas, mas falta um alvo
O dia em que todos foram às ruas
O que poderia ser um movimento apartidário se tornou antipartidário e, consequentemente, autoritário, visto que bandeiras de partidos e de movimentos sociais eram rasgadas e seus integrantes, quando não hostilizados, agredidos. O orgulho deu lugar à preocupação, e a sensação de ameaça ao poder democrático no Brasil era uma realidade. O gigante virara um monstro prestes a devorar seus criadores, nos trazendo lembranças de 40 anos atrás, quando uma passeata semelhante abriu as portas dos mais sombrios períodos da história do Brasil.
A comparação era impossível de não ser feita. Poucos dias depois da Marcha da Família com Deus pela Liberdade, que reuniu meio milhão de pessoas em todo o Brasil para protestar contra as medidas do governo João Goulart, o então presidente foi deposto e um regime ditatorial assumiu o poder no país. O editorial do jornal O Globo escrito em 1964, elogioso aos golpistas, parece ter sido escrito ontem: “Vive a Nação dias gloriosos. Souberam unir-se todos os patriotas, independentemente de vinculações políticas, para salvar o que é essencial. Enfim, de que todos os nossos problemas terão soluções, pois os negócios públicos não mais serão geridos com má-fé, demagogia e insensatez. A esses líderes civis devemos externar a gratidão de nosso povo. O movimento vitorioso não pertence a ninguém.”
O “gigante” virou um monstro prestes a devorar seus criadores, nos trazendo lembranças de 40 anos atrás, quando uma passeata semelhante abriu as portas dos mais sombrios períodos da história do Brasil
Com tanta gente nova que nunca sequer tinha protestado algo na vida, a incoerência e a despolitização foram comuns em todo o Brasil. Não me refiro somente aos cartazes do tipo “fora corrupção”, como se isso pudesse impedir corruptores e corruptos de pararem de roubar, ou fosse possível a presidente Dilma baixar um decreto extinguindo a roubalheira no país. Isso nem seria grave, pois fez parte da superficialidade e falta de direcionamento dos protestos. O grave erro foi se permitir pautar pela grande mídia, ou seja, a mesma multidão que gritava “fora Rede Globo” e hostilizava seus profissionais, era a mesma pautada por ela. Cerca de 20 militantes da Central Única dos Trabalhadores (CUT), que sequer é um partido, foram agredidos e expulsos da concentração do protesto em São Paulo. O professor Douglas Belchior, integrante da UNEafro, em artigo no site da revista CartaCapital, afirmou que também foi agredido na Paulista. “Rasgaram a minha bandeira da UNEafro, um movimento social negro que nada tem a ver com partidos, mas não deixa de ser um”. Não foi diferente com militantes do Psol, PCdoB e PCB, partidos tão comuns em protestos.
Acabo defender no Senado a abolição de todos os atuais partidos políticos oficiais.
— Cristovam Buarque (@Sen_Cristovam) June 21, 2013
Em artigo, o jornalista Mário Magalhães, autor da biografia Marighella – O Guerrilheiro Que Incendiou o Mundo, saiu em defesa da participação dos partidos nos movimentos. “Condenável é partido aparelhar movimentos e protestos, impondo sua agenda particular às reivindicações coletivas. Isso é partidarismo. Mas a presença de agremiações políticas é uma tradição democrática, e muito o Brasil deve a elas (…) Os que aplaudem a massa reprimindo militantes, tendo na “vanguarda” neonazistas, têm partido, sim: o Partido da Intolerância, o Partido do Ódio. Já vimos esse filme.” Na tribuna do Senado, na sexta-feira (21), o senador Cristovam Buarque (PDT) afirmava que o povo tinha razão, que os partidos “fracassaram” e defendia a sua “abolição”. A resposta nas redes sociais foi imediata. “Em meia hora fui chamado de senil, louco, bundão, canalha, maluco, irresponsável e outros adjetivos. Pior que continuo achando que estou certo”, escreveu o senador no Twitter. A resposta para tantos ataques está na história: uma das primeiras medidas das ditaduras brasileiras (Estado Novo e Militar) foram extinguir os partidos políticos. No campo internacional, o fascismo de Mussolini também governou sem partido. A dúvida que fica é: a exemplo do deputado Mário Martins, que renunciou ao mandato por não achar que a UDN não mais o representava, por que Cristovam não faz o mesmo?
Por causa da guinada conservadora dos protestos, líderes do Movimento Passe Livre, responsáveis pelo início dos protestos em São Paulo que terminaram se alastrando pelo Brasil, decidiram não convocar a militância para mais protestos no momento. “Houve uma hostilidade com relação a outros partidos por parte de manifestantes (…) Nos últimos atos pudemos ver pessoas pedindo a redução da maioridade penal, além de outras questões que consideramos conservadoras. Por isso suspendemos as convocações”. Há relatos que militantes do MPL também foram agredidos. Neste sábado, em sua página no Facebook avisaram que irão continuar com manifestações, mas agora pelo passe livre.
Em Brasília os protestos tomaram ares de caos. O prédio do Itamaraty foi um dos mais afetados, com vidros quebrados e uma tentativa por parte de uma minoria de vândalos de incendiá-lo. Em outras cidades do Brasil prédios públicos também foram depredados e lojas, saqueadas. Ao todo mais de 70 pessoas ficaram feridas em confrontos com a polícia e um morto por atropelamento, em Ribeirão Preto (SP). Diante da agressividade dos protestos e da completa falta de rumo que ele seguia, a presidente Dilma Rousseff prometeu se reunir com governadores e prefeitos para buscar soluções em áreas como saúde e educação, tão criticadas pelos manifestantes.
“Vou convidar os governadores e os prefeitos das principais cidades do país para um grande pacto em torno da melhoria dos serviços públicos. O foco será: primeiro, a elaboração do Plano Nacional de Mobilidade Urbana, que privilegie o transporte coletivo. Segundo, a destinação de cem por cento dos recursos do petróleo para a educação. Terceiro, trazer de imediato milhares de médicos do exterior para ampliar o atendimento do Sistema Único de Saúde, o SUS.” Sobre corrupção, Dilma prometeu mais transparência. “Precisamos oxigenar o nosso sistema político. Encontrar mecanismos que tornem nossas instituições mais transparentes, mais resistentes aos malfeitos e, acima de tudo, mais permeáveis à influência da sociedade. É a cidadania, e não o poder econômico, quem deve ser ouvido em primeiro lugar.” A presidente prometeu também uma reforma política “ampla e profunda” e reafirmou que os protestos estavam sendo ouvidos por seu governo: “Eu estou ouvindo vocês! E não vou transigir com a violência e a arruaça. Será sempre em paz, com liberdade e democracia que vamos continuar construindo juntos este nosso grande país.”
Não é a toa que Dilma reafirme a importância da democracia no país, já que os protestos assustadoramente passaram a defender ideias conservadoras. Sendo assim, medidas precisam se tornar concretas o quanto antes para evitar que novos movimentos voltem às ruas, mas desta vez com uma roupagem bem mais homogênea, direcionada a assumir por meio de golpe o poder no Brasil.
* Tiago Negreiros é jornalista e comenta noticiário internacional e político na Revista O Grito!
Os artigos da seção Opinão não refletem, necessariamente, a opinião da revista.