ROBERTO PIVA, O ANDRÓGINO ANTROPOCÓSMICO
Um dos poetas mais radicais da literatura brasileira nos deixa para vagar nas páginas da Divina Comédia
Por Alexandre Figueirôa
Editor da Revista O Grito!, no Recife
Hoje, ao acordar, em vez de dedicar a primeira parte da minha manhã em queimar lipídios, reduzir a taxa de triglicerídeos e espantar o colesterol ruim, caminhando e dando voltas em torno do nada, resolvi incendiar meus neurônios e colocar desordem na minha alma conformada de pequeno burguês, lendo, ao acaso, poemas de Roberto Piva. Para quem não sabe o poeta Piva foi para o plano da Divina Comédia no último sábado, depois de meses de penúria numa enfermaria do Hospital das Clínicas de São Paulo. Ele sofria de Mal de Parkinson e apesar da Editora Globo ter relançado a sua obra completa em três volumes – Um Estrangeiro na Legião, Mala na Mão & e Asas Pretas e Estranhos Sinais de Saturno –, trazendo seus poemas de volta à cena, Piva, nos últimos tempos de sua existência de 73 anos, sobrevivia graças a ajuda dos amigos.
A poesia de Piva é marcada por uma atmosfera marginal e libidinosa, como atestou Eliane Robert Moares no posfácio do segundo volume da coletânea da Globo. Poeta da metrópole e da noite, Piva vagava nas plagas do surrealismo, mas não seguia os mesmos passos do movimento vanguardista propagado por Breton. Seu surrealismo transgressor adaptava-se aos seus anseios e obsessões e deslocava para o Brasil de hoje uma mistura frenética de reminiscências greco-romanas, pós-modernidade e forças cósmicas e telúricas, em que sua visão de mundo era capaz de nos colocar num instante frente a questões de ordem social e, no momento seguinte, nos lançar nos braços do delírio, do amor e do sexo.
Para Piva a ideia de limite, de linha certa a ser definida não encontrava eco. Sua literatura era prosa e era poesia, ele não seguia as normas da boa conduta nem na linguagem nem no agir. Seu homoerotismo era marcado pelo amor a figuras dos rapazes. Garotos, por vezes até imberbes, no limiar entre a adolescência e a vida adulta e de preferência, os rebeldes e depravados, mas que pelos seus versos eram alçados a uma condição sublime, seres capazes de levar-nos ao êxtase e ao desespero. E Piva assumia abertamente a sua condição de poeta da contracultura, mesclando nos seus versos os extremos de sua imensa bagagem intelectual em que Buda e Exu, Lautréamont e Mário de Andrade conviviam lado a lado como personagens do Inferno de Dante Alighieri.
Mas, como não sou crítico literário é melhor não tentar decifrar o indecifrável ou tecer teorias para explicar uma poesia que nos arrebata por sua beleza sem rodeios e pela força das palavras incendiárias atirada aos nossos corpos arfantes. Vamos então ler Porno-samba para o Marquês de Sade, Os Escorpiões do Sol ou O Século XXI Me Dará Razão e parafraseando o próprio poeta: “viver a epopéia do amor que começa na cama com os lençóis desarrumados feito um campo de batalha”.
Para quem deseja conhecer melhor a obra de Roberto Piva, além dos três volumes editados pela Editora Globo, há uma interessante entrevista com ele, nessa página paulista.
O documentário Assombração Urbana, de Valesca Canabarro Dios, da série Brasil Imaginário do Doc TV I também nos oferece um perfil do poeta. Vale também procurar o ensaio “A Arte de Transgredir (uma introdução a Roberto Piva), escrito por João Silvério Trevisan no livro Pedaço de Mim (Record, 2002).