Estreou dentro da programação do Recifest – Festival de Cinema da Diversidade Sexual e de Gênero, o espetáculo Salto, da companhia Bote de Teatro. Com livre inspiração na montagem brasileira dos anos 1970 de Os saltimbancos, quatro atores e uma cantora e atriz convidada, incorporam a verve de sujeitos-usuários que procuram uma forma de se descolar da realidade em que vivem estabelecendo o que a companhia sinalizou como “uma nova forma, mais justa, de viver em sociedade”.
Após a estreia, o espetáculo entra em temporada de 3 a 18 de abril, sempre aos sábados e domingos, 20h, no YouTube da companhia. Para ter acesso à apresentação é necessário se inscrever no formulário eletrônico que consta no perfil oficial da companhia @boteteatro.
Como faz uma releitura com profunda incursão nas relações tecnológicas, a companhia Bote faz desta estreia uma expansão, onde o corpo, o som e o texto não são as únicas plataformas para se manifestar diante do mundo. Lançando mão do que eles intitulam como cyberpresença, a companhia sofistica o seu entrelaçamento com a realidade cravando a cisão definitiva na tradição aristotélica que vê o texto em detrimento da concretude da cena.
Assim, eles fazem uso da gramatologia essencial que compõem as lives, o cinema, a música eletrônica, o transe e o próprio teatro para metrificar, diante do público, respostas às questões essenciais delineadas pela montagem de 43 anos atrás e que, hoje, ainda ainda não encontraram a assertiva verdadeira: Todos juntos somos fortes? Realmente não há nada a temer? E o que fizemos com aquilo que fez sentido naquela época? Fez sentido?
Ao buscar respostas para questões que pensávamos estarem sanadas, o Bote flerta com aquilo que Horace Mann identificou como “serendipity”, neologismo inspirado no conto lendário Os três príncipes de Serendipe”, onde heróis estão sempre fazendo descobertas e traçando pontes onde os outros só enxergam vazios. Atestando no aleatório as oportunidades para se conectar com eventos que moldam a nossa realidade. Segundo o pesquisador Pek Van Andel, a serendipidade é a “arte de fazer descobertas não buscadas”, mas que são essenciais para o entendimento pleno do edifício de cristais em iminente quebra que compõem o cotidiano individual e coletivo.
O Grito! conversou por e-mail com a Companhia e manteve a centralidade da entrevista na compreensão dos meandros da adaptação e das fontes em que bebem. Não há uma voz que delimite as respostas na entrevista, eles falam em “nós”, como um organismo-espetáculo-pensante. A apresentação tem duração de 45 minutos e foi gravada no Teatro Luiz Mendonça, no Parque Dona Lindu, na Zona Sul do Recife. No elenco estão as atrizes Inês Maia e Una Martins e os atores Daniel Barros, Cardo Ferraz, e Pedro Toscano.
Como foi o processo de adaptação dos Saltimbancos?
Nós, enquanto grupo, estamos numa pesquisa há mais de dois anos que se debruça sobre a coletividade, sobre o estar junto ou, simplesmente, como manter-se grupo. Chegar nos saltimbancos foi um caminho meio natural para todos nós do Bote. É uma obra que faz parte da nossa memória afetiva e quando fazemos um paralelo entre teatro, nossa infância e as experiências que ficaram dessa transa, foi unânime a necessidade de recorrer ao texto de Chico.
Como presentificar um espetáculo já tão referenciado?
O processo de adaptação veio a partir de um dessecamento da peça, pra gente, o que tinha mais valor durante o processo era a trajetória dos quatro arquétipos ali presentes, o que eles representavam socialmente e como eles lidavam com aquilo que era necessário de ser articulado dentro do espetáculo. Hoje, adultos, fazendo uma leitura da dramaturgia, nós encontramos uma camada que antes, criança, não captamos. A narrativa é uma ode marxista às revoluções, às carências de confrontamento e a criação de novas formas de se viver em sociedade mais justas e auto gerenciadas de forma horizontal, ou melhor, com equidade. E foi em cima disso que nós pensamos a nossa adaptação. Trazer para o agora um espetáculo que tantas vezes já foi mastigado, engolido, regurgitado, e engolido novamente vem do nosso desejo de tentar emplacar aquilo que está velado dentro do percurso da peça. Para isso foi necessário que a gente limasse a linguagem para infância da trajetória, na nossa versão, os corpos que ali vivem trazem uma bagagem que se assemelha a questionamentos mais adultos. Nós constantemente durante o processo nos perguntávamos: todos juntos somos fortes mesmo? Se encontramos alguma resposta? Não. Não encontramos, mas tentamos levantar essas incertezas dentro do nosso espetáculo e compartilhá-las. O que faz hoje o jovem que passou sua infância cantando au-au-au, ia-i-on, miau-miau-miau e cocorocó. O quanto que fica? O quanto é eficaz? Recriando metáforas, fomos seguindo essa ideia de fábula, mas dentro de outra atmosfera.
A música continua como uma tônica?
O espetáculo, assim como em Saltimbancos, envolve muita música. É parte fundamental de nossa peça, as letras de Chico entraram no texto dos personagens de forma irônica. Agora, aquilo que era cantado perde a ludicidade da música e ganha força como atmosfera,a gente traz a estética da cena clubber, da noite, das drogas, da música eletrônica para ambientalizar os anseios da juventude, que somos nós no final das contas. Tivemos uma honra imensa de trabalhar com uma parceira nossa, a DJ olindense Libra na construção da trilha sonora original da peça. Libra é produtora de uma festa clubber na cidade e já se apresentou no Carnaval do Rec Beat, então ela sabia muito bem o que estava fazendo. São todos os minutos embalado por uma track única.
Em um período em que cultura da convergência é o lugar comum dos produtos e bens culturais, como trazer inovações, questionamentos e encruzilhadas para o teatro?
Se permitindo novas perspectivas, mesmo. Misturar as diferentes linguagens da arte se tornou lugar comum, acredito eu, justamente por essas vontades de questionamentos, encruzilhadas e inovações. As linguagens enquanto entidades puras começaram a se esgotar, isso já era uma vertente forte antes da pandemia e só se intensificou com ela. A escolha de reinvenção é constante no teatro, como no cotidiano, desde sempre e, até então, essa ideia de expansão vem com um valor que muitas vezes é consequência da soma de outras linguagens. Por exemplo, uma atriz que agrega práticas vindas das artes marciais para compor o seu monólogo ou o próprio Kathakali que vive desde sempre na potência do hibridismo da dança e do teatro. Essa lógica de artes integradas impulsiona as experiências, levanta os estímulos. Somos fãs do Teatro. Estamos sedentos por trocar com o público e foi muito doido transformar SALTO numa obra que converge com o audiovisual mas não foi triste, foi enriquecedor. A gente assumiu a experiência. Nesse momento de isolamento onde a linguagem teatral se treme nas bases e se pergunta “como continuar existindo?” Os resultados, majoritariamente, são produtos audiovisuais. Não fazer as pazes com essa informação poderia precarizar o nosso trabalho e também não tínhamos a pretensão de inventar a roda. Seguimos fazendo uma peça de Teatro mas dessa vez, usando o cinema como público e se apropriando de tudo aquilo que ele poderia nos oferecer de elementos que nos impulsionam, como falei acima. Talvez o nosso jogo seja o de brindar com nossas referências, sempre que possível, mesmo que elas sejam de outras naturezas. Isso pode ampliar nossas perspectivas. Um outro exemplo mais próximo, assim como o filme de Salto, para a adaptação para o presencial, nós também vamos recorrer ao híbrido de artes. Para ela, a gente conta com a Direção de Movimento de Kildery Iara, que trará soluções para preencher artifícios que no filme foram criados pelas ferramentas do audiovisual, e no presencial usaremos com a dança. Criando uma outra ação-hibridação dessa vez mais próxima da dança-teatro. Serão 3 meses de trabalho com a preparadora em nossa sede, situada no bairro da boa vista no Edf. Texas, onde trabalharemos partituras que irão compor o espetáculo.
Considerando a pandemia, como trazer experiências reais do espetáculo de teatro para um público que irá consumir pela tela?
Parece fantasia, mas acreditamos que há uma mágica que existe quando o Teatro acontece e é brincando com ela que a gente procura sustentar a imagem teatral nas telas. Artifícios que transformam o zero no cem. No teatro tudo é possível. Eu posso estar num palco vazio olhar para plateia e dizer: eu estou numa ilha deserta. A tendência é que quem assista se permita compor essa imagem junto ao atuador. No cinema essa liberdade tão explícita é subutilizada, os trabalhos lidam com necessidades mais realistas para criar a ilusão. Preservar essa estrutura de pensamento e criação foram os pontos fortes nas nossas intenções de não descaracterizar o trabalho como uma obra teatral. A gente não queria que fosse algo como teatro gravado, pois acreditamos que o teatro, tal como é, só atinge seu máximo na presencialidade, na troca com o público. Então gravar uma peça encenada como em um teatro e querer que as pessoas tenham a mesma experiência, seria um pouco demais. Como solução, nós nos apropriamos de todas as ferramentas audiovisuais e criamos uma obra cinematográfica, mas que tem como base a liberdade e imaginação do teatro. A pandemia nos afastou da presencialidade, mas não nos privou de criar e teatro é uma criação coletiva entre ator e público, só que nesse momento intermediados pelo cinema. A gente abraçou a linguagem do audiovisual como ferramenta levando em consideração que os resultados iriam transpassar até o próprio cinema, inevitavelmente. A hibridação foi a nossa escolha, é tudo uma grande mistura, até não ser nem mais um nem mais o outro.
As questões sociais apontadas pelo espetáculo dos anos 70 ainda estão presentes na encenação?
Na verdade, o fato das pautas dos anos 70 ainda serem pautas atualmente é o grande centro da peça. Nós adaptamos Saltimbancos não em uma ideia de trazer para o mundo atual, embora seja inevitável que isso tenha acontecido, até por causa do texto que fala muito das nossas aflições pessoais, que são atuais. Mas além disso, a grande ironia está em observar os ciclos. Veja, Saltimbancos foi escrito na época da ditadura, que por sua vez foi baseado em um texto italiano “I Musicanti”, que foi feito na época do fascismo italiano, que por sua vez foi baseado em um texto dos Irmãos Grimm, “Os Músicos de Bremen”. Todos esses textos se encaixam muito bem com as suas épocas, não por mérito dos textos e sim porque a sociedade segue em declínio, repetindo os mesmos erros, como Plínio Marcos respondeu uma vez quando perguntaram como as obras dele eram tão atuais. No dia 31 de Março, estrearemos SALTO em um governo autoritário, com mais semelhanças do que diferenças com esses outros governo que passaram, então mais do que nos perguntar “será que ainda temos pautas que se conectam com os anos 70?” é se perguntar “por que continuamos andando em círculos? por que essas pautas estão TÃO presentes?”. Pegamos essa ideia e fizemos um paralelo com a própria história dos animais de Saltimbancos, eles partem em busca da utopia, do grande sonho. Mas no final, por mais que para eles seja uma vitória, eles retornam para ocupar as mesmas funções que faziam quando eram empregados: o burro carrega, a galinha cozinha, o cachorro vigia e a gata entretém. No final das contas, todos nós sentimos como eles agora, especialmente passado um ano de pandemia e a gente se vê de volta ao começo. A gente brinca um pouco com isso até na cenografia e na direção de arte, levamos o espetáculo para uma atmosfera retrofuturista, onde o passado e o futuro se confundem na intenção de questionar nossa ideia de evolução. Achamos que o público também pode se identificar com isso, só esperamos não destruir pra eles esse grande símbolo da infância que é Saltimbancos, e que também fez parte da infância de todos nós. Ou talvez seja para destruir mesmo, não sabemos, vamos ir além e ver o que vai dar.