O que mudou nos 20 anos da Lei de Direito Autoral

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Foto: Iain Farrell/CreativeCommons.

Criada para proteger a criação artística, a lei ainda enfrenta desinformação, críticas de autores e se vê diante de anacronismos em tempos conectados. Qual a relevância do copyright nos dias de hoje?

O pincel desliza sobre a tela, a caneta sobre o papel e os dedos sobre o instrumento. Seja boa ou ruim qualquer criação está protegida independentemente de registro. Ou melhor, seu criador está. Foi o que definiu a Constituição de 1988 que, ao redigir sobre a igualdade de direitos (o artigo quinto), assegurou a autores “o direito exclusivo de utilização, publicação ou reprodução de suas obras, transmissível aos herdeiros pelo tempo que a lei fixar”. Essa lei, definida dez anos depois, recebeu o número 9.610/98, e ainda hoje é pouco conhecida pelo público e por àqueles a quem protege.

Seja livro, música, filme, foto ou pintura, qualquer expressão ligada à criatividade ou quaisquer “criações do espírito”, como define a Constituição, tem seus criadores protegidos pela Lei de Direito Autoral. Ela permite que os autores utilizem da forma como bem entenderem a obra por toda a vida e ainda concentra essa decisão nas mãos de familiares até 70 anos após a morte do autor ou autores.

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“Se eu pegar um papel agora e escrever algo brilhante, ou mesmo que não seja brilhante, isso já é de minha autoria. Cabe a mim decidir se vai ser publicado ou não”, explica a especialista em propriedade intelectual Isabelle Rufino.

A Propriedade Intelectual engloba não só a Lei de Direito Autoral (LDA) como também a Propriedade Industrial. O tempo exclusivo de uso é uma das principais diferenças já que a criação no setor da indústria permite a exploração exclusiva de uma ideia apenas por uma determinada quantidade de tempo, sendo estas e outras definições explicadas numa regulação específica, de 1996, a Lei 9.279.

A LDA consolida outros limites e se divide entre direitos morais e patrimoniais. Os direitos morais são intransferíveis e vitalícios e hereditários, são eles que asseguram a decisão de escolha sobre o ineditismo, a integridade da obra, a retirada de circulação, entre outros. Já os patrimoniais podem ser vendidos e negociados, permitindo o ganho de lucro também por parte de editores e produtores que podem adaptar criações para outros formatos, retransmissão e criação de obras derivadas.

Um pouco de contexto histórico

A busca por ter seus direitos reconhecidos enquanto autor existe no Brasil desde o início do século 20. Em 1917, a compositora e maestrina Chiquinha Gonzaga fundou a primeira sociedade de arrecadação e proteção dos Direitos Autorais, a Sociedade Brasileira de Autores Teatrais (Sbat). Chiquinha considerava que suas criações musicais, reproduzidas nos teatros, durante peças, eram tão importantes quanto o trabalho cenográfico, do diretor, dos atores ou o enredo em si. Dessa forma ela entendia como justo o recebimento de uma parte do valor arrecadado.

Apesar da definição “Teatrais” no nome (que deixaria de ser utilizada décadas a frente), a instituição realizava a distribuição de valores tanto para dramaturgos quanto para músicos, e assim permaneceu inclusive após a criação do Escritório Central de Arrecadação e Distribuição (Ecad) na década de 1970.

Do início de um século para outro é inegável que surgiram outras situações – e tecnologias. Mesmo a legislação atual pode ser melhorada. Criada há exatos vinte anos, a Lei de Direito Autoral (LDA) modernizou a regulamentação anterior, datada de 1973, conforme destaca a superintendente executiva do Ecad, Glória Braga.

“A Lei 5.988/73 foi quase totalmente alterada e modernizada quando a nova [9.610] entrou em vigor. Havia à época um pleito da classe artística, por exemplo, para que fosse reconhecido que ‘é autor a pessoa física criadora’, pois a lei de 1973 confundia titularidade com autoria. A Lei 9.610/98 resolveu essa questão!”, afirma Braga.

“Há diferentes formas de proteção. Ela estabelece que somente o autor tem o direito de utilizar e dispor de sua obra, bem como autorizar ou proibir a sua utilização por terceiros. É uma lei moderna e necessária, um instrumento de proteção ao criador, que garante aos criadores o direito de serem remunerados por suas obras”, descreve.

Aí veio o digital para mudar tudo

Embora a norma aponte diretrizes sobre todos os tipos de suportes, é tangível que o meio digital traz questões particulares. “Em aplicativos de streaming não dá para delimitar quantas pessoas estão tendo acesso àquela obra. Num grande evento, como uma feira, por exemplo, mesmo que o som fique sendo executado em apenas um stand, como eu vou saber quantas pessoas passaram por ali? Por média do público geral? E se foi um stand mais visitado ou menos?”, problematiza Isabelle Rufino.

“Os direitos autorais, por mais justos que eles sejam não correspondem de maneira nenhuma algo que pode ser representativo para o autor”, diz Raimundo Carrero

O cálculo do valor a ser arrecadado varia de acordo com a situação, tamanho de público ou espaço quadrado, no caso de produtos fonográficos. As definições para isso constam no Regulamento de Arrecadação da Ecad firmado com participação de músicos e compositores. A base para essas cobranças é a Unidade de Direito Autoral, que atualmente está estimada em R$ 74,02 – o último reajuste foi em julho de 2017. Dessa quantia, o órgão retira para si de 15%.

Segundo a advogada, a dificuldade no cálculo esbarra numa questão operacional. “Os debates costumam problematizar o arrecadamento e distribuição dos direitos. Nem a Ecad dispõe de tecnologia para fazer uma boa varredura do que está sendo executado e de fato repassar quantias precisas. Isso costuma ser feito por amostragem, e depende do tipo de informação que é passada. Por exemplo, se você passa uma lista de shows para o Ecad, e não diz que músicas estará executando, não há como o órgão adivinhar”, explica.

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O Creative Commons chegou como boa opção para os criadores. (Foto: Kristina Alexanderson/CreativeCommons).

Na setor fotográfico, a questão se assemelha. Diversas vezes uma imagem pode ser copiada e reutilizada sem conhecimento do seu autor. “Dar os créditos ao fotógrafo é uma ação mínima. Dependendo do uso que for feito daquela imagem é possível haver uma cobrança em cima disto. Teoricamente eu posso pegar uma imagem e usar nas minhas redes sociais, pois não há fins lucrativos. Mas e se eu fosse uma blogueira famosa? As minhas redes atuam também como minha área de trabalho e não há definições claras sobre isso na Lei”, aponta Rufino.

A superintendente da Ecad avalia a questão de forma diferente. Ela não considera a internet como um meio problemático, mas sim uma área em que o órgão pode atuar com pioneirismo. “Ao longo dos anos, temos acompanhado o surgimento de novas tecnologias e ampliando a atuação no digital, reforçando nosso pioneirismo. O Regulamento de Arrecadação, definido pelos próprios artistas filiados às associações que administram o Ecad, estabelece as formas de cobrança em meios como podcast, transmissão simultânea e webrádios. Muitos canais já entendem esse pagamento como justa remuneração aos autores”. E enfatiza: “Tecnologias vêm e vão, mas a produção artística continua protegida por essa lei completa e atual”.

A questão do controle ou acompanhamento do uso que é feito, vista como o maior ponto de impasse, não depende tanto de uma reformulação da lei, mas sim de métodos eficazes. Novas tecnologias, nesses casos, podem ser extremamente úteis e revolucionárias na hora de acompanhar o uso que é feito de obras artísticas. “A Kodak, que foi muito prejudicada por não se atualizar, estuda hoje a possibilidade de realizar o controle das imagens por blockchain, o instrumento que é usado nas criptomoedas. Assim poderia haver um rastreio eficaz do uso de imagens”, revela Rufino.

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Raimundo Carrero na biblioteca que leva seu nome: remuneração pequena. (Foto: Alyne Pinheiro/PCR).

Literatura, quase uma nova história

Autor de 21 livros, Raimundo Carrero publicou o primeiro em 1975. “O acordo era feito quando o editor decide publicar. A gente entregava o livro, assinava um termo de publicação e a editora publicava e pagava 10% do valor de vendas”, descreve.

A prestação de contas e fiscalização fica a cargo dos próprios envolvidos: editora e escritor. “Se eu ligar e perguntar quantos livros meus foram vendidos, eles me informam. Se há algo mais para receber, eles pagam. O acompanhamento é a gente mesmo que faz”, conta, mas admite que não se preocupa tanto com a questão, já que ela não é sua principal fonte de renda.

“Os direitos autorais, por mais justos que eles sejam não correspondem de maneira nenhuma algo que pode ser representativo para o autor”, avalia. No geral, as editoras ficam com 40% do valor de vendas, a livraria permanece com 50% e o autor com 10%.

“Hoje esse valor [recebido pelo escritor] varia e às vezes é mais fácil pedir uma parte do número de cópias, vender tudo no lançamento e ficar com o que for apurado”, conta Carrero. A renda dele vem do curso que realiza em seu Centro Cultural, de palestras e minicursos e de premiações literárias.

Ponto fora da curva

Estranhamente, a Lei 9.610 também se estende aos “programas de computador”, ou mais especificamente o código fonte, que traduz a interface em símbolos. Os códigos muitas vezes podem ser copiados entre os programadores ao serem disponibilizados como “abertos”. Contudo, usar um código aberto para fins comerciais pode “contaminar” a criação, e fazer com que o novo produto siga as determinações de uma de suas “obras-primas”.

 

“Se compro um CD e passo para um pendrive, eu estou ferindo a lei. São detalhes e questões que não se encaixam na realidade de hoje”, segundo a advogada Isabelle Rufino

 

Trabalhando na área desde 2004, o desenvolvedor de software Bruno Farache desconhece o implicação da lei brasileira em seus trabalhos. “As regulamentações a que prestamos atenção são licenças internacionais. Dependendo de qual for tem as definições, se pode modificar, se pode modificar e comercializar”, conta Farache. “A lei não tem influência sobre o que fazemos não. Nem é mencionada”, sinaliza.

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Para Braga, do Ecad, a lei incentiva a produção. (Foto: Divulgação).
A questão geralmente vem a tona em momentos de discutir patentes, contratos e acordos. “Pergunto a eles se não poderiam criar a ferramenta toda do zero, sem pegar recursos já prontos. A resposta geralmente é: ‘sim, daria. Mas eu levaria um ano. E o programa já está aqui, já está pronto’. Ou seja, eles teriam que refazer. É complexo”, destaca Isabelle Rufino.

“Eu percebo essa lei como uma norma que as pessoas se preocupam em saber se estão agindo de acordo ou se estão ferindo o direito de alguém ao incorporar de algum modo a obra de outra pessoa na própria. Mas há uma dificuldade de clareza”, pondera a advogada.

Há poucos exemplos sobre as limitações e os usos que podem ser feitos. “Uma pessoa tem limitação ao direito de reprodução. Você pegar a obra de alguém e colocar em outro formato ou publicação, na internet ou não, para isso a lei tem definição. Estou reproduzindo a obra de alguém e o limite desse direito de reprodução é você fazer uma cópia para uso individual de trechos da obra”, sinaliza.

“Ou seja, a pessoa não faz nada com isso. Fica muito restritivo. Se compro um CD e passo para um pendrive, eu estou reproduzindo integralmente a obra. Então, mesmo que para uso individual, eu estou ferindo a lei. São detalhes e questões que não se encaixam na realidade de hoje”, acrescenta.

A superintendente da Ecad destaca a importante se cumprir essa norma. “O respeito à lei do direito autoral é essencial para que tenhamos uma cultura cada vez mais rica, para que os artistas se sintam encorajados a continuar compondo, criando. O nosso trabalho é garantir que os artistas sejam respeitados, reconhecidos e possam viver dignamente de sua arte. O pagamento do direito autoral é o incentivo para que os artistas continuem criando”, reforça Glória Braga.

Isabelle Rufino. Foto Juliana Almeida
Advogada Isabelle Rufino: lei ainda tem anacronismos. (Foto: Juliana Almeida).

Na área musical, independente do lucro obtido, ou não, é necessário prestar contas. “Havia dúvida quanto ao pagamento dos direitos autorais de execução pública em shows/eventos sem cobrança de ingresso, porque a Lei 5.988/73 trazia conceitos de lucro direto e indireto. A lei atual solucionou esse impasse, deixando claro que em qualquer situação (havendo ou não lucro) são devidos os direitos”, aponta Braga.

Em 2010 houve uma proposta de atualização com participação pública sobre os artigos, mas as modificações não foram consolidadas. “As mudanças que teve são de 2013 referente a gestão coletiva de direitos”, conta a advogada. “Não houve mudança sobre o que as pessoas podem fazer, nem com relação a clareza desses usos possíveis nem com relação a flexibilização desses ao menos no campo educacional e do sem fins lucrativos”.

Independente da proposta que se queira dar a obra, um caminho básico é pedir o consentimento. “Se você vai fazer o uso de uma criação de outra pessoa, pedir autorização antes é razoável. Isso poderia ser agilizado se houvesse uma marcação feita pelo autor do que pode e do que não pode ser feito com aquele material”, defende Rufino.

Uma iniciativa que visa isso é o uso das marcações criadas pela Creative Commons. Elaborada em 2001, a prática já foi mais utilizada no país. “Acho que houve um esquecimento dela, e o uso diminuiu”, avalia Rufino. “Mas algo semelhante já tornaria a situação toda mais prática. Há essa necessidade de clareza. As pessoas precisam disso”.