Era final de fevereiro de 2022. Depois de dois anos com a fachada portando a mensagem “Cuidem-se. Em breve, estaremos juntos”, o São Luiz, um dos últimos cinemas de rua do país, enfim voltava a encontrar o público pela primeira vez após o início da pandemia. O momento, que era de celebração pela superação do período mais duro da crise sanitária, vinha, contudo, acompanhado de uma triste lacuna para o segmento audiovisual pernambucano com a morte do programador Geraldo Pinho, responsável pela curadoria da sala desde sua reinauguração, em 2009, pelo Governo de Pernambuco.
Nomeado como o novo programador da sala naquelas circunstâncias, o jornalista e crítico cinematográfico Luiz Joaquim encarou um desafio duplo: além de assumir a tarefa de trazer os espectadores de volta ao cinema enquanto atravessávamos uma terceira onda de Covid-19, ele tomou para si a missão de honrar o legado de um trabalho que vinha sendo construído há mais de dez anos. E assim, o cinema ficou aberto sob seu comando por um período curto, mas não por isso menos efervescente.
É que a atividades foram interrompidas no final de maio, quando o equipamento cultural foi novamente fechado. Desta vez para uma obra de modernização da instalação elétrica e do sistema de climatização. A previsão para conclusão da reforma, que era de seis meses, fez com que a sala localizada na Rua da Aurora atravessasse setembro de 2022, mês em que completou seus 70 anos de existência, longe do calor do público.
O problema é que mesmo agora, com a obra concluída no final de dezembro, o São Luiz continua sem oferecer uma programação à população recifense e desde então uma pergunta não para de ecoar na cabeça dos seus assíduos frequentadores: o que, de fato, está acontecendo? A preocupação aumentou nos últimos meses, pois, com a alternância de governo, o cinema ficou sem programador e, mais recentemente, perdeu parte da sua equipe, já considerada pequena. Segundo os ex-funcionários, a quantidade de trabalhadores hoje é insuficiente para dar conta de um aparelho cultural da grandiosidade do São Luiz, tombado como monumento histórico.
Em entrevista à Revista O Grito!, o ex-programador da casa, Luiz Joaquim, contou que a previsão era de que as atividades retornassem ainda em fevereiro deste ano. Ao menos, eram esses os planos antes do seu desligamento em 3 de janeiro, quando a governadora Raquel Lyra publicou um decreto de exoneração coletiva dos servidores que ocupavam cargos comissionados. Mas o que alardeia é o modo como essa saída aconteceu: sem nenhum tipo de conversa ou diálogo.
“Eu soube da minha exoneração pelas redes sociais. Alguém leu a notícia e me escreveu perguntando se eu estava nesse grupo de exonerados da Fundarpe. E eu disse que não sabia e que ia ligar para o RH, aí eu fiz isso e me confirmaram”, revelou. “Eu não fui procurado em nenhum momento para repassar o trabalho que eu vinha fazendo”, explicou ele, que também acumulou a função de diretor do Museu da Imagem e do Som de Pernambuco (Mispe).
Procurado pela reportagem, Fred Almeida, o Superintendente de Planejamento e Gestão da Fundarpe, órgão estadual responsável por gerenciar o equipamento, informou que o fechamento do São Luiz deverá se manter devido ao colapso do sistema de captação de água pluvial durante as fortes chuvas de fevereiro. “Houve vazamentos no forro do cinema, no gesso ornamental e nas pinturas. Pedaços do forro estão com perigo de cair, então tem que ficar interditado por questões de segurança”, detalhou. Quanto ao prazo para retorno às atividades da sala, ele informou ainda não existir uma data, mas que seria até o meio do ano. “Estamos elaborando o projeto para fazer a licitação”.
A reportagem também questionou sobre a ausência hoje de um programador para a sala. Segundo o representante da Fundarpe, essa pessoa só será contratada quando o equipamento retomar às atividades. Ainda ao longo da conversa, foi revelada uma recente redução da equipe operacional sob a justificativa do não funcionamento da sala. Ao todo, o Cinema São Luiz contava com sete funcionários, além dos terceirizados da segurança e da limpeza.
Demissões apagam parte da história do São Luiz
Arthur Frederick, conhecido por todos como Tuca, foi um dos nomes recentemente desligados. Ele ocupava a função de bilheteiro desde a abertura oficial do cinema pelo Governo do Estado, em janeiro de 2010. Apesar de já ouvir, desde o começo do ano, conversas sobre possíveis demissões, ele confessa que não imaginava que poderia chegar no São Luiz pelo fato da equipe desde o começo já ser bastante reduzida. “Nunca tinha rodízio. Era sempre nós mesmos, dando sangue, dando amor, atendendo desde dez pessoas numa sessão, como também 800 pessoas ou até 992 que é a lotação máxima. Quantas vezes a gente lotou o cinema”, relembra.
De acordo com ele, mesmo nos períodos em que o cinema esteve parado (como agora), a equipe sempre esteve presente, inclusive no acompanhamento das obras para apontar eventuais fragilidades da sala. “A equipe que ali trabalhou esse tempo todo foi uma equipe única, a gente cuidava. Cada um tinha seu trabalho, tinha seu setor, mas era tudo unido ao Cinema. Quer dizer, a gente estava em casa dormindo, de repente, tinha um problema grande lá, chamava todo mundo e ia para ajudar”, conta.
Conforme apuramos, ao todo quatro pessoas foram demitidas da equipe técnica, incluindo também o projecionista João Bosco, que estava no cinema antes mesmo de se tornar aparelho cultural estatal, quando ainda era do grupo empresarial Severiano Ribeiro. “Ele está lá há mais de 30 anos e é a pessoa que conhece o São Luiz com a palma da mão, é uma figura muito importante”, destaca Luiz Joaquim.
Muito além de uma sala de cinema
Inaugurado em 6 de setembro de 1952, o São Luiz resiste como uma das últimas salas de rua do país e encanta os visitantes pela sua beleza artística e arquitetônica. Tombado em 2008 como monumento histórico pelo Governo do Estado, esse verdadeiro palácio da sétima arte conta com uma programação que foge à lógica do mercado cinematográfico atual.
“A arquitetura da própria sala de cinema de rua se coloca mais à disposição da participação e da entrada da população, que é uma coisa que, obviamente, essas salas de cinema comerciais de shopping não fazem. Existe uma barreira já ali que é a barreira do ingresso que é caro, do estacionamento do shopping, das outras coisas que vão ser compradas”, defende a pesquisadora e professora de cinema Carol Almeida.
Segundo ela, a manutenção de uma sala como esta pelo poder público não pode ser relegada a segundo plano, já que garante à população o acesso aos direitos culturais e humanos. “Me parece que a gente está sempre falando da cultura como uma coisa supérflua, uma coisa menos importante que educação, que saúde, quando na verdade ter acesso a equipamentos culturais produz educação, produz saúde, inclusive. Não existe uma vida saudável sem você ter acesso a esses equipamentos culturais, sem você ter acesso a essas produções.”
Entre idas e vindas
De 2009 para cá, foram várias as vezes que o São Luiz fechou e reabriu. Por sinal, o sistema de climatização parece ter sido a grande dor de cabeça, mas além disso, o cinema também acumula ao longo dos anos alguns problemas com projetores.
Para Antonio Gutierrez, o Gutie, idealizador e diretor do Animage, o Festival Internacional de Animação de Pernambuco, o Cinema São Luiz é sempre uma prioridade para o evento, tanto pela beleza, quanto pela localização, ainda que haja algumas dificuldades. “Até quando o projetor não funcionava direito, a gente chegou a alugar projetor para fazer, para poder ter uma qualidade, mas a equipe é muito comprometida com o espaço. Essa questão da sala é mais de gestão do governo estadual”, pontua.
Envolvida em outros projetos como a Mostra de Cinema e Direitos humanos e o Festival de Cinema Infantil, com edições também no São Luiz, a produtora cultural Silvana Marpoara teme que o espaço acabe no esquecimento. “Como o Cineteatro do Parque, sob a administração da prefeitura do Recife, que ficou fechado e se acabando por 10 anos, até ser reformado e reaberto recentemente”, desabafa.
Ela chama ainda atenção para o papel decisivo que a sociedade civil, articulada com artistas e agentes culturais, deve exercer para pressionar as autoridades locais responsáveis pela manutenção do equipamento. “O que não se pode é ficar calado, viver e reviver todo o saudosismo desse lugar, esperar que alguém cuide desse caso e deixar o tempo passar até que o Cinema São Luiz do Recife fique apenas na memória de cada um de nós.”