Totalmente noir, a série espanhola Netflix O Sabor das Margaridas (El Sabor de las Margaritas), tem protagonista feminina de peso. A guarda civil Eva Mayo, ou melhor, a tenente Rosa Vargas (María Mera), é a típica policial que acaba se envolvendo com o seu objeto de investigação a ponto de não medir mais a distância entre o que é legal e o que é justo. Além disso, ela exibe sintomas graves de perturbação mental, configuradas principalmente por episódios de amnésia, algo que certamente comprometeria a sua personalidade e sua carreira. Na primeira temporada, essas questões não são tão evidentes quando a tenente Rosa Vargas chega ao povoado de Murias, na Galícia, para investigar o desaparecimento de Marta Labrada (Paloma Saavedra).
Na medida em que a trama avança, e surge a questão da morte de Margarita (Martina Stetson), nos damos conta de que a história pessoal da mocinha é também parte de mais uma tragédia envolvendo tráfico de mulheres e prostituição infantil. Uma das personagens mais frágeis do início, a inocente adolescente Rebeca Soane (Sara Sanz), filha do policial Mauro Soane (Toni Salgado) vai desempenhar um papel fundamental em toda a trama.
A primeira parte da história se passa no povoado galego de Murias, pertencente ao condado de Lugo, a cidade onde se desenvolve a ação da segunda parte, em que o ar bucólico de pequena cidade é abandonado pela intrepidez urbana. A trama passa a incorporar hotéis luxuosos, boates, agências de modelo que funcionam como fachada para o s negócios escusos e até mesmo uma fundação católica de apoio a meninas em situação de rua.
Desta forma, enigmas que ficam apenas como mistérios não totalmente resolvidos na primeira temporada ganham desdobramentos essenciais na segunda temporada.
Não se trata aqui apenas de vingar a morte de uma irmã, mas de buscar justiça para mulheres e crianças que são tratadas como gado e que tem sua vida e morte comercializadas sem pudores pelos empresários do tráfico humano. Embora o alvo preferencial dessa caçada sem tréguas movida por ela sejam homens influentes e importantes, a história não perdoa as mulheres que colaboram e elas estão em cena também como personagens de destaque. Enquanto houver alguém disposto a pagar, diz a jornalista Laura Nogueira (Noelia Castaño), haverá vítimas.
Esse diferencial é interessante também na segunda temporada. Apesar do protagonismo feminino, os personagens masculinos são interessantes e assertivos, em outras palavras, incorruptíveis, como Miranda (David Seijo) e Raúl Salgado (Santi Prego), policiais que não se desviam de seus objetivos e que possuem uma perspectiva humanista. Por outro lado, Salgado tem plena consciência das dificuldades enfrentadas em uma sociedade conservadora , em que a corrupção está disseminada dentro da própria corporação, e sem nenhuma estrutura para enfrentar o crime organizado.
Ainda assim, Eva como boa protagonista noir, não reconhece mais no sistema legal e na sociedade um instrumento de justiça e equidade. E acaba influenciando Salgado, que vai fazer com ela uma boa dupla. Para quem assiste no Brasil, é fácil desligar as legendas, pois o galego é muito semelhante ao português, diferentemente de séries como A desordem que ficou, que usa a Galicia apenas como cenário.
Essa questão de borrar as linhas tênues entre o bem e o mal, que fazem a mocinha estar longe de ser uma modelo de conduta, é típico de um thriller policial. Eva é praticamente uma marginal, ainda que com muito toque romântico, bem latina. Não importa o que ela faça, torcemos por ela. Na segunda temporada, entretanto, esses elementos que pareciam perfeitos e já se encontravam enunciados se dissolvem por vezes em um roteiro algo confuso, ainda que ao final, muitas pontas soltas sejam alinhavadas.
Outro problema que é comum nas séries coproduzidas para a Netflix, parcerias com emissoras e produtoras locais, é o de deixarem o lançamento para depois da exibição em televisão, e desta forma, para o mercado internacional, deixam ganchos para uma segunda e terceira temporadas que só se resolvem um ano depois, caso desta série, lançada em março de 2019. A revelação sobre os desígnios perversos de Maltilla (Carlos Villarino), algo que já era esperado desde a primeira temporada, contribui para acentuar o suspense, mas pelo visto vai ficar para a próxima, se houver renovação.
A coprodução desse original Netflix é da produtora de audiovisual CTV, TVG e Comarex, com roteiro original de Ghaleb Jaber Martínez, Eligio Montero e Raquel Arias, e recebeu o prêmio de “Melhor Série de Televisão” no XVII Premio Mestre Mateo, de Academia Galega do Audiovisual