Se no ano anterior vivemos na cena pernambucana um momento de inovação, sobretudo com ritmos como brega e forró, este ano temos um apelo pop ainda maior desses gêneros naturalmente oriundos da periferia. E, mesmo com crise e acocho, presenciamos eventos de música se renovando com toda força.
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E chega até a ser difícil falar de “cena”, já que o atual momento da música no Estado é incrivelmente diversificado (até pulverizado), muitas vezes com pouca interação. Então temos batalhas de raps com público cada vez maior e festas de rock alternativo, passando por bailes, projetos de frevo na rua, uma agenda de shows de médio porte e novos espaços mais alternativos, tudo simultâneo. Parte do público circula com desenvoltura por todos esses espaços sem se fazer parte de nenhum. Mas existem iniciativas que promovem intercâmbios interessantes, como é o caso do Rec-Beat e o No Ar Coquetel Molotov.
Há ainda movimentos interessantes ocorrendo no rap, no frevo, na música eletrônica e no funk. A cena pernambucana nunca esteve tão plural. Selecionamos os principais destaques – mas com aquela certeza de que teve muito mais. É apenas um guia breve que dá uma geral do que aconteceu de mais legal por aqui em 2017.
Arrete e o rap feito por mulheres
Sempre Com a Frota, das Arrete, revelou um grupo de rap bem original. Ao mesmo tempo em que se apegam à filosofia e às bases do hip hop mais clássico, elas chegam com uma tinta bem local, nordestina, com referências que vão do mangue, à poesia do cordel, passando pelo frevo e maracatu. Faixas como “Poetizar” e “Arrete Não” são novos hinos de orgulho local que precisam ser descobertos por mais gente. Do hip hop raiz, aquele fundado no final dos anos 1970 nos EUA, elas trazem a junção das artes: rima, dança, poesia, DJ. É por isso que na formação do grupo estão duas dançarinas, o que faz do show delas uma das coisas mais explosivas que vimos esse ano.
O ano foi interessante para as minas do rap em Pernambuco. Além das Arrete vimos a LadyLaay brilhar no festival No Ar Coquetel Molotov; novas faixas e apresentações da Donas, Femigang e Ranne Skul. E Recife ainda recebeu uma edição do Slam das Minas, onde rappers e poetas mostravam suas rimas com muita moral.
O novo No Ar Coquetel Molotov
Depois de dois anos na Coudelaria Souza Leão, o festival No Ar Coquetel Molotov chegou renovado em novo espaço, o Caxangá Golf Club. Mas não foi apenas o local mais central, de fácil acesso, que garantiu o sucesso dessa edição. Os produtores conseguiram chegar ao entendimento de que o cenário musical hoje é bastante complexo, diverso e cheio de coisas a dizer. A mistura de rap, rock, música eletrônica e experimental promoveu interessantes intercâmbios que desafiam aquelas caixinhas que costumávamos contar quando se falava de festivais de música. Debaixo da chuva pesada que caía, a plateia dançava junto: rappers, drags, seres não-binários, góticos, clubbers, todo mundo. A programação teve nomes importantes da renovação da cena musical, a exemplo de Rincon Sapiência, Linn da Quebrada, O Terno e destaques indies de fora, como as Hinds, da Espanha. Sem falar de veteranos como Arnaldo Baptista e Curumin.
O Rec-Beat também se destacou mais uma vez como um dos palcos mais ecléticos, inovadores e divertidos do ano. A programação apresentou ao público carnavalesco nomes como Inna Modja, do Mali, e a cubana La Dame Blanche, além de trazer estrelas do independente como As Bahias e a Cozinha Mineira, Teto Preto e Rashid. Eles ainda tiveram instiga de fazer uma edição especial, o Rec-Beat Apresenta, n’A Casa do Cachorro Preto (#rip).
Sofia Freire
Misturando pop e música erudita, Sofia Freira lançou novo disco, Romã, que foi financiado pelo Natura Musical. Produzido por Sofia ao lado de Homero Basílio e Chiquinho Moreira, ela narra seu próprio amadurecimento, questões sobre o feminino, além de reflexões pessoais sobre o mundo. Com apenas 20 anos, Sofia traz um salto estético e narrativo bem grande em relação à sua estreia, Garimpo, de 2015.
Kalouv
A banda de rock instrumental/ambient Kalouv fez uma bem-sucedida campanha de financiamento coletivo para este seu terceiro disco, Elã. Depois dos elogiados Pluvero (2014) e Sky Swimmer (2011) e o compacto Planar Sobre o Invisível (2016), eles chegam aqui com um novo método de criação e novas ideias sonoras. Gravado após um período de imersão em um sítio, eles trouxeram sintetizadores e guitarras, que agora passam a guiar as composições, inovando dentro do post-rock que sempre foi a base do grupo. A campanha de crowdfunding aproximou ainda mais a banda de seus fãs, fortalecendo laços. A capa do disco, assinada pela designer paulistana Thais Jacoponi, foi um plus interessante nessa nova fase do Kalouv.
Romero Ferro
Como circulou Romero Ferro em 2017! O músico pernambucano apostou em um pop com sabores locais, mas ao mesmo tempo cosmopolita, e conquistou espaços tanto na cena independente quanto no mainstream. E merece tudo. Sua presença de palco, carisma e sonoridade o faz talhado para conquistar o primeiro escalão do pop nacional. Além da promoção de seu disco, Arsênico, Ferro ainda chamou atenção com o projeto Frevália, no Paço do Frevo, onde reunia nomes locais para celebrar o gênero.
“Renascimento” da noite de Recife (da RMR, na real)
Recife oscila momentos de marasmo e efervescência de sua cena noturna. Se, em determinados momentos a profusão de eventos oficiais e gratuitos morgam iniciativas e projetos arrojados de música, em outros, temos diversos eventos competindo pelo mesmo público. Agora estamos chegando ao ápice desse segundo momento. E o mais interessante é que essa fase chega em meio a uma crise econômica e política, o que mostra que quando a coisa tá feia, o melhor mesmo é a interação face a face, ganhar as ruas, enfim. A fase atual é bem boa pelo fato de ser plural, inclusiva, aberta e com a proposta de mistura, como é a música pop BR hoje. Tivemos uma extensa pauta no Baile Perfumado, de Céu a Elza Soares; muitos projetos no Edf. Texas, novos espaços como a URSA Bar e Comedoria, Caverna, DezDez, Naylê Comedoria e muitos outros. Foi um ano com muitos bons momentos na Melodia de Budega, Batalha da Escadaria, festas na TOCA (antigo Lesbian Bar), sem falar nos eventos da Golarrolê, com destaque para a Odara e para o IraqClub. Foi o ano de boas festas e shows também em locais da Região Metropolitana do Recife, como Camaragibe (com muitos eventos no Cine Teatro Bianor Mendonça Monteiro) e Olinda.
PWR Records
Fundado por Hannah Carvalho e Letícia Tomás, o PWR Records, fundado no Recife, busca trazer mais representatividade para a cena independente. O selo dá suporte aos lançamentos de grupos de mulheres, além de ajudar na circulação e confecção de merchandising. Elas também organizam eventos e participam de festivais importantes. Em um cenário historicamente dominado por homens, a PWR é uma bem-vinda surpresa. Entre os primeiros lançamentos estão PAPISA e In Venus.
Life’s Too Short
Com três edições realizadas até dezembro de 2017, o Life’s Too Short mostrou-se como um dos eventos mais importantes dessa atual renovação da música independente de Pernambuco. Com eventos concorridos e atmosfera inclusiva, os shows trouxeram nomes como Pedro Flores (MG), Thiago Borba, Mahmed, Terno Rei, Kalouv, entre outros. Os LTS acontecem sempre em um local diferente (o do Nascedouro, lotado, foi um dos mais legais). Que venham mais edições em 2018.
Almério
O cantor e compositor pernambucano Almério ganhou merecidos holofotes com Desempena, seu segundo disco, que saiu em março deste ano. Natural de Altinho, mas com base em Caruaru, ele misturou referências do homem sertanejo com androginia, música pop, além da MPB combativa dos anos 1970. Uma das vozes mais originais de sua geração, Almério representa o Nordeste com personalidade e inovação.
Respeita o brega!
Como toda expressão nascida na periferia, o brega sempre sofreu preconceito e quase sempre foi visto como uma expressão “menor” dentro da música pernambucana. Tudo nessa frase é um absurdo sem tamanho, mas a real é que agora os eventos oficiais terão que contar com o brega em suas programações. Tudo por conta da aprovação pela Assembleia Legistaltiva de Pernambuco da proposta que tornou o brega recifense como uma das expressões artísticas genuinamente pernambucanas. A Lei nº 16.044/2017, do deputado Edilson Silva (PSOL), alterou a Lei nº 14.679/2012 e garantiu ao brega um lugar de respeito como bem cultural.
Já faziam parte da lista de expressões originais do estado ritmos como coco, afoxé, baião, caboclinho, capoeira, forró e manguebeat. Até o Carnaval deste ano, o brega estava excluído da programação. Foi este ano também que foi lançado o livro do pesquisador e jornalista Thiago Soares, Ninguém é Perfeito e a Vida é Assim, uma cuidadosa pesquisa sobre o gênero. Na publicação, Soares relaciona o brega, enquanto expressão artística, com um contexto social das comunidades da periferia do Recife. Leitura mais do que recomendada.