O Matador: Bandoleiros e a Reinvenção do Western

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O Matador
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Diego Morgado como o matador Cabeleira

O filme O Matador (Brasil, 2017), de Marcelo Galvão, foi o primeiro filme produzido no Brasil pela Netflix,  e segue alguns dos preceitos das produções originais do grupo à risca. Trabalha com marcos do cinema fantástico e de aventura e mescla em sua narrativa tradições culturais e estéticas locais . Trata-se de um regional global, fórmula que permeia outras produções como Okja (2017) e séries como Sense 8 (2015-2017), uma obra que embora mantenha traços de sua cultura original, pode ser fruído em qualquer idioma, e ainda assim fazer sentido. Estrelado pelo ator português Diego Morgado, o Cabeleira, nome do matador de aluguel e jagunço cuja história alinhava o filme, foi lançado como um western brasileiro no Festival de Gramado, em 2017.

O filme narra a história de um menino, que virá a se tornar o Cabeleira, que é abandonado e resgatado pelo matador de aluguel que tem a alcunha de Sete Orelhas (Deto Montenegro), e que vai criá-lo em meio ao sertão vivendo quase como um animal. Sem acesso à civilização, ou a qualquer tipo de educação formal, o jovem cresce e aprende com seu tutor o que ele sabe fazer de melhor – atirar e matar. As belíssimas imagens do filme pertencem à Cimbres, aldeia indígena na região da Pesqueira, em Pernambuco, a 200 km de Recife.

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Sete Orelhas e o menino Cabeleira

Embora o contexto histórico seja colocado de forma alegórica, todos os personagens são emblemáticos de um período marcado por disputas de terras, embates com o governo e com as volantes, pela relação ambivalente entre a lei e a ordem. O protagonismo de Cabeleira é o pretexto para introduzir na tela os demais matadores: o Tenente Sobral (Paulo Gorgulho), Sete Orelhas, Cicatriz (Julio Silveira) e o Gringo (Will Roberts), personagem que originalmente seria interpretado por Danny Trejo, o Machete, anti-herói chicano criado por Robert Rodriguez. O estadunidense Roberts é também o treinador de armas do filme, função que leva em paralelo com a de ator.

O narrador do filme é o ator Allan Souza Lima, que ficou famoso como o garoto de programa contratado por Clara, personagem de Sonia Braga em Aquarius (2016), aqui no papel de um contador de histórias que vai contar a saga do Cabeleira para uma dupla de matadores, os Irmãos Miranda (Nill Marcondes e o rapper Tio Fresh). Esse é outro ponto em que a fabulação do filme se apropria de um cânone para na verdade transgredi-lo. Nas histórias de cordel o narrador é em geral um músico, um poeta. O cordel é uma manifestação artística tipicamente nordestina, em que curtas histórias são contadas por meio da junção entre imagens e palavras em pequenos folhetos, com suas características únicas de métrica, rima e textos desenvolvidos em linguagem coloquial. As imagens podem ser feitas em xilogravura, um tipo de gravura que utiliza a madeira como base, mas também são utilizados desenhos com traços mais modernos, como os de HQ. No caso da xilogravura, as palavras, assim como as imagens, são entalhadas na matriz, na madeira, e depois impressas no papel. As folhas vão compor pequenos livros, vendidos na rua e nas feiras, muitas vezes dispostos dependurados em cordas, daí o nome. Ao colocar o jovem desconhecido, interpretado por Lima, que surge em cena com seus dois filhos, como um personagem que só vai se identificar ao final, para performar o contador de histórias, de certa forma, o filme deixa uma sensação de desconforto que antecipa uma reviravolta ao final.

A trilha de Ed Cortês, que foi premiada no Festival de Gramado, cria o ambiente ideal para uma visão pop do sertão, bastante comum em algumas obras do Novo Cinema Pernambucano, como o emblemático Baile Perfumado. O arranjo da música “Orai  por nós”, cantada pela irmã do diretor, Nanda Galvão, na abertura, possui uma batida que oscila entre o pop do manguebit e a tradicional música moderna nordestina representada por nomes como Zé Ramalho, Elba Ramalho e Amelinha, e até por Zeca Baleiro, que inaugura o que ficou conhecido como o Agreste Psicodélico. Baleiro já declarou algumas vezes seu amor pela música italiana, e em especial por Nino Rota e Ennio Morricone, o grande músico responsável pelas trilhas de Sergio Leone e dos filmes de Tarantino, outro admirador do gênero. O diretor Marcelo Galvão declarou por diversas vezes o seu apreço pelos filmes de western spaghetti, que ele assistia com o avô.

Há algo das historietas em quadrinhos na forma como se delineia a trajetória de Cabeleira na tela, e na família de Monsieur Blanchard (o ator francês Etienne Chicot), cuja mulher, Madame Blanchard, interpretada por Maria de Medeiros, é praticamente uma das poucas mulheres a ser nomeada ao longo da história. Mãe protetora, ela defende Pierre (Igor Cotrim),  um filho mimado e extremamente perverso, até a última gota de sangue. MariadeMedeiros3

Maria de Medeiros como Madame BlanchardO bando de Lampião, que aparece de forma secundária na trama, era dos poucos a aceitar mulheres. Lampião, na vida real Virgulino Ferreira da Silva, quebrou a regra de outro dos bandoleiros e matadores ao levar para viver com ele sua parceira Maria Bonita, a Maria Gomes de Oliveira. Havia ainda o casal formado por Corisco, alcunha do alagoano Cristino Gomes da Silva Cleto, e Sérgia Ribeiro da Silva, a Dadá, e a eles se somaram outros.

As mulheres da história, a começar por Soraia (Thaís Cabral), a prostituta negra que dá a luz ao filho do Matador, entram em cena com poucas perspectivas de sobrevivência, sempre em posições servis, profundamente humilhadas. E quando o ousam se rebelar, caso de Renata (Thaila Ayala) e sua irmã Fernanda (Daniela Galli), são punidas de forma trágica e exemplar.

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Fernanda (Daniela Galli), e o namorado sádico interpretado por Quatro Olhos (Marat Descartes).

No filme de Galvão, o universo masculino e patriarcal impera de forma quase absoluta. Cabeleira, criado como bicho no sertão pelo matador Sete Orelhas, vai assumir o lugar de seu protetor junto ao cruel Blanchard, o francês, passando a ser um matador de aluguel, para ganhar a vida, uma vez que mal sabe falar.

No filme seu código de honra não lhe permite matar mulheres e crianças, e suas limitações morais vão acabar fazendo com que ele perca o posto para outro matador. A julgar por estudos recentes,  é difícil acreditar que houvesse algum código moral que resistisse a um bom contrato. Os cangaceiros conseguiram dominar o sertão durante muito tempo, porque eram protegidos de coronéis, que se utilizavam dos cangaceiros para proteger seus negócios, como matadores de aluguel. Um caso particular foi o de Januário Garcia Leal, o Sete Orelhas, que agiu no sudeste do Brasil, no início do século XIX, tendo sido considerado justiceiro e honrado por uns e cangaceiros por outros.

O cangaço é das poucas organizações criminais de bandoleiros que incorporava mulheres, como bem observava o historiador inglês Eric Hobsbawn em seu antológico estudo  Bandidos, cuja última edição saiu em 2012, ano de sua morte, e incluía um ensaio sobre o papel das mulheres nos bandos. A função de Maria Bonita e Dadá, como das demais companheiras dos bandos, não incluía pegar em armas, mas eventualmente isso acabava acontecendo. Mesmo porque era impraticável viver em meio tão hostil e conseguir sobreviver sem elas.