O Mal Não Existe
Ryûsuke Hamaguchi
JAP, 2023, 1h46. Drama. Distribuição: Imovision
Com Hitoshi Omika, Ryûji Kosaka, Ayaka Shibutani
Logo em sua primeira cena, O Mal Não Existe provoca o espectador com um prolongado travelling dos altos galhos de uma floresta japonesa. A grandiosidade da natureza preenche a tela, por completo, durante alguns minutos. A hipnótica sequência anuncia o recado, salientado ao longo de toda a obra: a humanidade precisa desacelerar. Em sua simplicidade narrativa, o filme se tece monumental com planos virtuosos e simbologias arrasadoras.
Após o estrondoso sucesso de Drive My Car (2021), vencedor do Oscar de Melhor Filme Internacional, o diretor Ryusuke Hamaguchi faz uma belíssima meditação sobre o tempo da natureza, do planeta, em contraposição à ansiedade capitalista de monetizar sem limites. A história acompanha os moradores de um vilarejo rural, a algumas horas de Tóquio, onde uma empresa pretende construir um “glamping”: acampamento de luxo no seio da natureza selvagem, com o mote de os hóspedes se reconectarem à terra e sua biodiversidade. Entretanto, o projeto é improvidente, com as falhas características dos empreendimentos que pouco se lixam para o meio ambiente, quiçá para as pessoas locais, diretamente impactadas.
Takes lentíssimos traduzem o decurso do tempo daqueles personagens cujas vidas estão tão intrincadas ao rio, à montanha e à floresta. O zelo com o qual Takumi (Hitoshi Omika) enche garrafas de água na nascente do rio ou corta a madeira para fazer lenha demonstra a relação de respeito aos recursos naturais. Sua filha de oito anos, Hana (Ryô Nishikawa), conhece os diferentes tipos de árvores em uma floresta que, para um olhar urbano, parece ser toda igual.
A pequena personagem, inclusive, é uma espécie de fio condutor da narrativa: caminha de lá para cá, interage com os animais e nos guia para locais importantes da trama. Carregando a leveza e a curiosidade da infância, Hana representa a noção de futuro (em risco) da humanidade e é uma personagem marcante, fundamental no desfecho do filme.
O Mal Não Existe é repleto de cenas longas, como já dito, sobre as quais espectadores mais impacientes possivelmente se incomodarão. Com exceção de uma ou duas cenas (a sequência com os funcionários da empresa no carro, por exemplo, poderia ter menos tempo), acredito que o ritmo do filme condiz com sua proposta narrativa. Em um período histórico no qual a velocidade das informações e a pressa nos consomem, a obra de Hamaguchi peculiariza-se ao abraçar a lentidão. É um exercício de introspecção cinematográfica.
Sem fórmulas fáceis, a obra denuncia a toxicidade do capitalismo moderno. Maquiadas de empresas sustentáveis, as corporações prospectam o lucro imediatista e inconsequente. No Japão de tecnologias de ponta, o diretor põe o dedo na ferida e mostra como a robotização do trabalhador é realidade até mesmo em profissões “criativas”.
A dupla de funcionários Mayuzumi (Ayaka Shibutani) e Takahashi (Ryuji Kosaka) são o reflexo da falta de sentido – e de humanidade – de determinadas esferas do mercado. Não deixa de ser comovente perceber como Takahashi se sensibiliza com a realidade do vilarejo, a ponto de começar a questionar sua própria vida e suas decisões pessoais.
Outro ponto de destaque: a trilha sonora do filme. A música de Eiko Ishibashi acentua um dúbio sentimento de melancolia e serenidade, expressos na paisagem e na vida dos personagens. Há também, através da trilha, uma indução à sensação de perigo e aflição; ao decorrer da narrativa, os acontecimentos atendem a essa expectativa e a obra alcança seu ápice dramático. Mesmo com fatos que podem ser decifrados anteriormente, pelas pistas dadas pelo próprio filme, os eventos do terceiro ato de O Mal Não Existe impactam porque são muito enigmáticos e carregados de alegorias.
Parábola severa acerca das infrações humanas em relação ao planeta, o filme de Ryusuke Hamaguchi me fez lembrar de Ideias para adiar o fim do mundo, livro onde Ailton Krenak enfatiza:”Quando despersonalizamos o rio, a montanha, quando tiramos deles os seus sentidos, considerando que isso é atributo exclusivo dos humanos, nós liberamos esses lugares para que se tornem resíduos da atividade industrial e extrativista. Do nosso divórcio das integrações e interações com a nossa mãe, a Terra, resulta que ela está nos deixando órfãos (…)”. Que sejamos capazes de ouvir tais advertências.
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