Simpatia: Pensamento de Celso Furtado é mais ligeiro que seu corpo debilitado
RETRATO ACADEMICISTA DE UM INTELECTUAL POLÍTICO
O Longo Amanhecer se afoga em jargões econômicos e menospreza a vida de Furtado como fio narrativo
Por Rafael Dias
“A memória do brasileiro é curta”. A frase é puro chavão, mas tem sua cota de verdade. Não é incomum escapar à destreza de nosso córtex cerebral registros de atos vergonhosos, infrações penais e morais escabrosas, crimes horrendos; um escândalo a cada semana, fait divers alardeados pela imprensa e varridos, com a mesma rapidez, para debaixo do tapete em segundos, tão instantâneo como uma calefação. Aos feitos “heróicos”, ou seja, os bons exemplos, nem é dado o direito de aparecer na mídia – não são notícia. Se menosprezamos o passado recente, o desleixo com a nossa história contada nos livros é ainda pior.
Nesse ambiente de indiferença e de atual aparente “apatia” política, é fundamental um documentário como O Longo Amanhecer, do diretor José Mariani sobre a vida do economista e político brasileiro Celso Furtado, um dos mais eminentes intelectuais brasileiros do século 20, que estréia esta semana no Recife, com uma pequena faixa de exibição no cinema da Fundaj (Derby). Fundamental porque paramenta o espectador com dados e reflexões históricas, essenciais para entendermos o que se passa hoje no seio da sociedade, que parecem ter sido relegados ao baú de um antiquário. A cinebiografia, no entanto, pode não agradar ao gosto geral pelo estilo ortodoxo e formato fechado. Em outras palavras, é “certinho” demais, com teor academicista.
Ganhador de menção honrosa no festival É Tudo Verdade, em São Paulo, ano passado, O Longo Amanhecer (título emprestado de um dos últimos livros do autor) faz um apanhado da contribuição intelectual de Celso Furtado ao pensamento brasileiro na história recente. A obra documental reúne depoimentos da intelligentsia de esquerda – pensadores como Maria da Conceição Tavares, João Manuel Cardoso de Melo, Francisco de Oliveira, Osvaldo Sunkel, entre outros – além de uma entrevista inédita feita com o próprio Furtado, em julho de 2004, cinco meses antes de vir a falecer, junto com imagens, vídeos e fotos do arquivo pessoal. A preciosidade do filme está contida justamente nos depoimentos de Celso Furtado: vemos um homem simpático e franzino, com dicção arrastada, por vezes ininteligível, porém altivo e extremamente lúcido. A impressão é de que seu pensamento é mais ligeiro que a limitação de seu corpo já debilitado.
Previsível, o documentário segue a linha cronológica da biografia de Celso Furtado até chegar aos dias mais recentes, mais precisamente 2004, ano em que foi produzido. A narrativa parte de seu nascimento em 1920, em Pombal, na Paraíba, e de sua origem humilde; fala de sua formação acadêmica na Europa, no período pós-2ª Guerra; de sua tese revolucionária sobre o atraso econômico brasileiro e contra o subdesenvolvimento entre os povos latino-americanos; e de sua intensa participação política, duas vezes como ministro de Estado (nos governos de João Goulart e Sarney), o apoio à política nacionalista de Getúlio Vargas e seu papel decisivo para a implantação da Sudene, no governo JK, em 1959. Há também referências ao 1º governo Lula, de quem Furtado foi aliado e consultor político.
Recheado de jargões econômicos (keynesianismo, macroeconomia, monetaristas versus desenvolvimentistas), o filme é mais adequado ao público específico de estudiosos e acadêmicos, professores, estudantes pré-vestibular e pesquisadores. O diretor também passa a largo da vida íntima e da personalidade de Furtado. Quase não há dados pessoais, a não ser por algumas pistas confessionais, imagens da viúva Lucia Tosi e de seus dois filhos, em momentos de lazer em família, e de um vídeo filmado durante seu exílio na Europa (por sinal, belíssimos), além de alguns comentários furtivos dos entrevistados. Um desfalque sensível, que confere à produção um ar estéril, quase seco. A opção de Mariani, por outro lado, é compreensível, e voltamos à questão do começo do texto: resgatar, com todas as forças, um pedaço precioso de nossa memória. Além do mais, vale como uma elegia digna, e um dos mais elegantes manifestos políticos produzidos no recente cinema brasileiro.
O LONGO AMANHECER – UMA CINEBIOGRAFIA DE CELSO FURTADO
José Mariani
[idem, Brasil, 2007]
NOTA: 8,0.