O Dia Que Te Conheci
André Novais Oliveira
BRA, 2024. 1h11. Comédia/Drama. Distribuição: Filmes de Plástico
Com Renato Novais, Grace Passô
É fácil esquecer e ignorar o que está ao seu redor em um cotidiano exaustivo em busca de sobrevivência, uma realidade da maioria das pessoas da classe trabalhadora brasileira. Esta é a premissa do novo filme do diretor mineiro André Novais Oliveira , O Dia que Te Conheci. O irmão do realizador, Renato Novais, interpreta o protagonista Zeca, um bibliotecário de Belo Horizonte que luta para chegar ao trabalho na hora. O drama mistura sutilmente comédia e romance para indiretamente tecer um comentário sobre a representação de corpos e negritude tradicionalmente ignorados pela máquina midiática.
Na trama de pouco mais de uma hora, Zeca é um bibliotecário de uma escola infantil na cidade de Betim, na Região Metropolitana de Belo Horizonte, Minas Gerais. Ele vive na capital mineira e leva quase duas horas por viagem para chegar ao trabalho todos os dias. Depois de consecutivas faltas e atrasos, Zeca acaba sendo demitido e recebe a má notícia por Luíza, secretária da escola interpretada por Grace Passô (Levante). Inesperadamente, os dois acabam se entrosando melhor e descobrem que possuem muito mais em comum do que apenas o local de trabalho. Luiza precisa ir a Belo Horizonte para se encontrar com uma amiga e oferece uma carona a Zeca. Os encontros viram desencontros e reencontros. Sem muitos mistérios e de forma sutil a conexão entre Luíza e Zeca floresce mais intensamente fundindo-se a pacatas situações do cotidiano de uma pessoa adulta.
Zeca e Luíza concordam que são uns dos poucos empregados pretos da escola. Eles confessam que ficaram felizes por terem visto um ao outro no ambiente de trabalho. Os dois também encontram conforto ao descobrir que ambos fazem tratamentos médicos para combater a ansiedade. A descoberta acontece de forma natural com copos de cerveja na mão e nos entrega um dos momentos mais engraçados do filme quando Zeca flerta inconscientemente com Luíza ao convidá-la à sua casa para ela dar uma olhada na sua prescrição médica e verificar se tem alguém errado com o medicamento que ele está tomando.
O título do filme e seu material promocional prepara o público para acompanhar uma comédia romântica clássica como o sucesso hollywoodiano dos anos 1990 Mensagem pra Você, de Nora Ephron. Dois adultos de sexos opostos se apaixonam loucamente após se conhecerem melhor e superarem suas desavenças. O desenvolvimento do relacionamento entre Zeca e Luíza acontece como pede o roteiro, mas sem desentendimentos entre eles.
Para mostrar a progressão dessa convivência, André Novais convida o espectador para conhecer mais a fundo personagens que raramente no cinema brasileiro ou mundial seriam os protagonistas de uma obra desse gênero. Zeca e Luíza são pretos e gordos. Novais, no entanto, optou por uma forma distanciada para apresentá-los, talvez com a intenção de evidenciar como o público, de uma maneira geral, não preste atenção a um casal que não siga os padrões das comédias românticas. Por outro lado, isso talvez enfraqueça a empatia que eles possam despertar.
Em grande parte do filme a câmera está sempre distante dos sujeitos principais. Mesmo quando Zeca e Luíza compartilham confissões sobre sua saúde mental, que para muitos é um momento de extrema vulnerabilidade, os planos são bem abertos e não capturam profundamente as reações dos atores ao lidar com sentimentos internalizados. O outro símbolo de distanciamento é representado em uma cena de uma conversa entre uma das mães das alunas e Zeca num muro próximo a escola. Ao aguardar por Luíza, já ciente da sua demissão, Zeca interage com a mãe sobre o futuro promissor da sua filha por conta da paixão dela por leitura. A mãe confessa o respeito e entusiasmo que a menina tem pelo bibliotecário que ao mesmo tempo não revela seu novo status de desempregado.
Toda a interação ocorre na frente de um mural em homenagem a personalidades e ícones do ativismo negro mundial. Zeca questiona a mãe se ela sabe quem são as pessoas retratadas na arte. Ela reconhece Michael Jackson, mas tem dificuldade para reconhecer Malcom X, um dos líderes do movimento pelos direitos civis da população negra nos Estados Unidos dos anos 1960. Zeca ajuda-a a decodificar e aprender sobre o ativista. A cena provoca uma reflexão no público sobre representatividade negra reforçada com o motivo de outros murais do mesmo tipo apresentados em outros momentos do filme. Elas são vistas em cenas do cotidiano retratadas pelo diretor remetendo ao que vive a maioria dos brasileiros da classe trabalhadora ao caminhar para as paradas de ônibus de sua jornada ao trabalho.
A representação da distância entre corpos ignorados e o público só é quebrada quando o diretor de O Dia que Te Conheci utiliza a sensualidade e o beijo para eliminar esse distanciamento. O beijo e a troca de carícias entre Zeca e Luíza na conclusão do filme são um dos raros momentos em que a câmera se aproxima em planos mais fechados dos seus protagonistas. Apesar dessa escolha, a obra de Novais é eficaz como uma experiência de autoconhecimento e questionamento de um cotidiano que afeta a vida de muitas pessoas ao nosso redor conscientemente ou inconscientemente.
Vale ressaltar que O Dia que Te Conheci é mais um filme da filmografia da produtora mineira, Filmes de Plástico que apresenta uma representatividade que vai além do estereótipo de violência e pobreza quando são abordados personagens pretos e pardos no cinema. Como visto no último sucesso da produtora, Marte Um, seus protagonistas são pessoas que estudam ou que estão em posição de liderança e destaque, algo que sistematicamente é ocupado por pessoas brancas na história do Brasil.
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