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O charme da alienação tecnológica em “How do I know if my cat likes me?”

Hanne Lippard, Ellen Arkbro e Hampus Lindwall colaboram em primeiro álbum sustentado pelo minimalismo meditativo e reflexões sobre automação do cotidiano, tecnologia e alienação

O charme da alienação tecnológica em “How do I know if my cat likes me?”
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Hanne Lippard, Ellen Arkbro e Hampus Lindwall
How do I know if my cat likes me?
Blank Forms, 2025. Gênero: Minimalista, Experimental, Ambiente

Há discos que funcionam como coleções de músicas, faixas agrupadas por recortes específicos, temáticos ou temporais. Porém, há propostas que parecem extrapolar os sentidos primários da música e conseguem conceber novos ambientes de linguagem. Uma imersão em mundo novo de sentidos, semelhante a deparar-se com universos ficcionais. “How do I know if my cat likes me?”, disco colaborativo de Hanne Lippard, Ellen Arkbro e Hampus Lindwall, alcança com precisão esse estado criativo ao satirizar um cotidiano ultraprotocolar, o delírio que uma sociedade hipercapitalista torna realidade.

Minimalista em sua estrutura composicional, o trabalho de sete faixas e quase 40 minutos concebe, apenas com vocais e sintetizadores, cenários e situações objetivamente vívidas, mas caracterizadas pelo domínio absoluto da apatia. Constrói representações de um mundo completamente higienizado pelo formalismo corporativo, retratos que vão de salas de espera à serviços de atendimento online e interfaces automatizadas. 

Experimental, pela maneira como tematiza cada faixa através do aspecto meditativo dos sintetizadores contínuos e uniformes performados por Ellen Arkbro e Hampus Lindwall em dinâmica com o texto e performance vocal de Hanne Lippard. É, cênico, na mesma medida em que é funcional, utilitário e minimalista.

Suspeito que a principal força do trabalho reside na possibilidade simultânea de considerá-lo como um retrato distópico da contemporaneidade, bem como o de compreendê-lo como um recorte, um frame da realidade que já nos cerca. Esse senso paradoxal, o de que esses ambientes retratados estão simultaneamente distantes no tempo e muito vívidos no presente, constrói uma dinâmica muito única de conforto e ansiedade com o ouvinte. No fim das contas, é a própria contradição da vida que a sociedade contemporânea está construindo: uma estadia suficientemente confortável (para alguns), mas fundamentalmente desumanizada em seu princípio estruturante.

Mulher em pé na frente de um prédio

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A artista e performer Hanne Lippard (Foto: Felix Brüggemann/Divulgação).

O trio de artistas retrata uma sociedade que caminha a passos dolorosos para a capitalização de tudo, para a automação de procedimentos cotidianos regulares de trato e recepção, atividades que, por um ponto de vista, ainda insistem em nos convidar à uma experiência humana de coletividade. Neste sentido, o trabalho evidencia como esse conforto automatizado fundado em protocolos de relacionamento retira qualquer tipo de inclinação, personalidade ou emoção, seja ela positiva ou negativa. Uma contradição que germina no interior da própria gana por eficiência: a retirada de nós mesmo do processo.

No interior do retrato construído pelo álbum, parece que tudo o que restou da humanidade foram resíduos de protocolos públicos, serviços de atendimento, delicadamente compactados e higienizados para trazer conforto ao cliente, mas extirpados de qualquer traço de humanidade. Em nenhum nível, uma espécie de alteridade é incentivada, mas muito pelo contrário, a familiaridade, o conforto de si consigo mesmo é fundamento. Neste sentido, não há relação, não há outro, não há diálogo, não comunicação.

Foto em preto e branco de pessoa posando para foto

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A compositora e musicista Ellen Arkbro (Foto: Fylkingen/Divulgação.)

Esses protocolos são tão inofensivos que a entidade locutora sequer parece estar viva. Não há movimento, não há energia e, portanto, não há informação, já que não há diferença, perturbação. É o ápice da conformidade, o ápice da redundância. Isso fica claro na fiaxa “the long goodbye”, onde apenas palavras de despedida são trocadas, mas sem carregarem, em nenhum nível, sentido emocional ou de ação. São palavras inócuas, gestos vazios que, inclusive não instigam movimentos reais: as duas personagens sequer parecem sair do lugar. 

“– Bye! Have a great day. 
– You too. 
– Thank you.
– You’re welcome.
– It’s my pleasure. 
– Pleasure is all mine.”

(“– Tchau! Tenha um ótimo dia. – Você também. – Obrigado. – De nada. – É um prazer. – O prazer é todo meu.”, em tradução livre).

Trecho de “The long goodbye”

A performance e composição textual de Hanne Lippard aqui é excepcional, na medida em que atenta para a própria natureza de sentido da linguagem verbal. Através da repetição e de uma tautologia invariada, propõe transformar sua matéria em sons ocos, mera estética oral, como se desintegrasse, em cada palavra, qualquer rastro de intenção comunicativa possível, até alcançar a completa anonimidade ao fim do álbum em “At last I am free”, proferindo a frase “I can hardly see in front of me” (“Mal consigo enxergar à minha frente).

A performance vocal somada à sintética dos sintetizadores promove uma monotonia tão perene que beira o absurdo com tamanha ausência de engajamento emocional. É possível comentá-la à beira do surrealismo nesse sentido, sensação ainda mais contraditória na medida em que o trabalho mantém propostas composicionais muito bem firmadas em ideias simples, em arranjos mínimos, que evidenciam vazios e silêncios, lacunas que deslocam a percepção para o não dito, o não ouvido.

Foto preta e branca de homem de terno e gravata

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O compositor e músico Hampus Lindwall (Foto: Divulgação.)

É assim que me parece ser possível o trabalho me instigar imagens de espaços amplos, estruturas concretas de arquitetura anônima, ambientes associais. A jornada em How do I know if my cat likes me? é semelhante à de uma excursão em um mundo abandonado, apenas povoado por estruturas de concreto liso, incolores, tecnologicamente avançados. Um charme. 

A viagem pela estrutura de uma sociedade perfeitamente técnica, em que mesmo depois de seus criadores humanos terem sido extinguidos há cinco séculos, as luzes não se apagam, as escadas rolantes ainda rolam, e os atendentes virtuais ainda estão a postos para servir, só não possuem, mais clientela. Um sistema tecnológico autorregulador, eficiente, que neste meio tempo de extinção, desenvolveu independência plena da gerência humana. O puro orgulho dos investidores. 

A faixa que melhor aponta para essas sensações é “Unavailable”, em que Lippard incorpora uma atendente virtual de telefonia em um serviço que não se encontra mais disponível. A faixa trabalha essa ideia de uma tecnologia eficiente, mas delineada por um senso de isolamento, abandono e distância.

“– Thank you for waiting. 
Thank you for your call
Unfortnetely, all our operations are currently unavailable
You are number 6527 in line
Your estimated wasted time is….”

(“– Obrigado por esperar. Obrigado por sua ligação. Infelizmente, todas as nossas operações estão indisponíveis no momento. Você é o número 6527 na fila. Seu tempo desperdiçado estimado é…”, em tradução livre).

Trecho de “Unavailable”

Uma obra tão bem montada que consegue transformar qualquer tipo de organicidade humana em aparição sintética, automatizada, mas o faz com completa clareza e leveza, ao contrário de outros trabalhos eletrônicos que se utilizam da dureza, frieza e objetividade digital como argumento. Talvez por isso tão potente e, em certa medida, assustador, já que com toda monotonia confortável vai retirando todo o traço de humanidade até não sobrar, basicamente, nada. O ápice da técnica, do design, em que toda ação manifesta se inclina para a funcionalidade prática.

Entretanto, não é como se a palavra de Lippard não tivesse força semântica. Muito pelo contrário, é através do estranhamento causado por essa comunicação irresoluta e, portanto, pela escolha das palavras e performance da Hanne somada à monotonia dos sintetizadores que a força de algumas das composições se formaliza. De fato, um uso muito específico da língua, em que aponta para o esvaziamento de seu próprio sentido, mas consegue, ainda, significar pela maneira como é construída e proferida.

“Did You Know”, neste sentido, é uma das faixas mais potentes na questão de utilizar o texto como agente de fomento ao desconforto e estranhamento, já que se realiza na listagem de curiosidades sobre o mundo além de comparações detalhistas e específicas. A faixa mais parece um serviço de tecnologia “inteligente” tentando entreter seu cliente, mas o faz a partir de escolhas de informações peculiares e, em certa medida, desconfortáveis. No mínimo, são pontos que instigam a imaginação em pressupostos que, particularmente, operam em uma perspectiva semelhante à hipótese do “vale da estranheza”. Apresenta uma perspectiva externa de mundo, como um observador artificial, alienado das possíveis emoções que suas observações podem causar, e portanto as profere sem distinção. De certo modo, causam estranheza, na mesma medida em que atiçam uma curiosidade fundamental.

“[…]

– Did you know that maps are wrong? 
Did you know that, on venus, the day is longer than the year?
Did you know that laughing came before language?
Did you know that murder rates rise in summer?
Did you know that an app could save your life?
Did you know that the back of your head doesn’t show in the mirror?
Did you know that japan has a phone line to call the dead?
Did you know that everything falls at the same speed?”

(“Você sabia que os mapas estão errados? Você sabia que, em Vênus, o dia é mais longo que o ano? Você sabia que o riso surgiu antes da linguagem? Você sabia que as taxas de homicídio aumentam no verão? Você sabia que um aplicativo pode salvar sua vida? Você sabia que a parte de trás da sua cabeça não aparece no espelho? Você sabia que o Japão tem uma linha telefônica para ligar para os mortos? Você sabia que tudo cai na mesma velocidade?”, em tradução livre).

Versos de “Did you know”

O aspecto da incomunicabilidade, no entanto, parece ser o tema central do disco, evidenciado por seu próprio título do trabalho, que questiona “How do I know if my cat likes me?” (Como eu sei se meu gato gosta de mim?). Me parece ter essa coisa do intrasferível, de uma angústia contida, do isolamento. São representações tão vazias e tão impessoais que fazem dessa escuta alienada uma euforia sobre humanidade, e que nos faz refletir sobre isolamento, comunidade, industrialismo e a automação.

É nesse sentido um experimento muito interessante no uso estético de fundamentos da música ambiente, gênero notadamente associado ao senso de espaço associal, os famosos “liminal spaces”, mas o faz a partir de uma sátira hipnótica. 

Cênico e absolutamente mínimo, How do I know if my cat likes me? se sustenta no charme corporativo e na sedução tecnológica para construir um mundo sonoro anônimo, onde a incomunicabilidade tinge atmosferas em labirintos tautológicos. Onde a estética superou emoção humana. É o erotismo do design, e ele é delicioso, assustador e preenchido de calma.

Ouça How do I know if my cat likes me?

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