De Salvador (BA)
Quando viramos a última página do calendário é aquele alvoroço. Todo mundo quer saber, ou pelo menos boa parte da população, quando é que começam os famosos ‘esquentas’ de Carnaval; diz a crença que o ano só nasce oficialmente depois da festividade. A maior festa popular do mundo, e patrimônio público nacional, ganha camadas de complexidades sociais, históricas e econômicas, pois não tem como abordar o tema sem esquecer a sua origem e pluralidade negra. A socióloga Lélia González descreveu tal período como subversivo, pois é aí que os negros saem das colunas policiais e são promovidos à capa de revista. “De repente, a gente deixa de ser marginal para se transformar no símbolo da alegria, da descontração, do encanto especial do povo dessa terra chamada Brasil… a negrada vai pra rua viver o seu gozo e fazer a sua gozação. (…) Os não-negros abrem passagem para o Mestre Escravo, para o senhor, no reconhecimento manifesto de sua realeza… É também no Carnaval que se tem a exaltação do mito da democracia racial, exatamente porque nesse curto período de manifestação de seu reinado o Senhor Escravo mostra que ele, sim, transa e conhece a democracia racial”, argumenta a pensadora.
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A força ancestral do som dos tambores e cantos transatlânticos, oriundos da diáspora negra, aumentam conforme o coletivo se aproxima da avenida no circuito oficial do carnaval de Salvador da Bahia. A mensagem é direta: poder para o povo preto e o fim do racismo. São as cores, ritmos e movimentos que manifestam a passagem espiritual do ‘mais belo dos belos’, o Ilê Aiyê, primeiro e maior bloco afro do país.
Antes de você botar o bloco na rua e só voltar para a casa na Quarta-Feira de Cinzas, é importante ter a percepção de que o evento está sendo palco político para potentes manifestações críticas e que as sedes dos blocos, cortejos e escolas de samba são verdadeiros centros de resistência cultural em atividade não apenas no feriado da alegria.
Num tempo não muito distante (anos 1970 e 1980), era comum na capital baiana a exclusão de foliões negros nos blocos mais famosos do Carnaval. Apenas uma multidão branca vestia os tradicionais abadás enquanto homens e mulheres negras se mantinham nos postos de serviçais, atividade datada desde o período colonial. Mas, como diz Caetano Veloso, precisamos passar pela segunda abolição já que a escravidão e segregação racial no nosso território nunca acabou. A ferida ainda aberta revela a dificuldade que a nossa nação possui ao lidar com o passado de barbárie e exploração contra negros e indígenas. Numa andança atual pelas ruas soteropolitanas durante as diversas celebrações populares, é perceptível que no maior espaço negro fora do continente africano os ambulantes e trabalhadores braçais seguem sendo majoritariamente a parcela de pele escura.
A criminalização de pessoas negras ganhou ênfase no século 19 com a ‘lei da vadiagem’ (no Código Penal de 1890), que era aplicada para proteger os indivíduos partidários da ‘moral e dos bons costumes’ e visava perseguir as camadas mais pobres e negra na prática da higienização social. Condutas como mendicância, embriaguez e o jogo da capoeira, todos tidos como vadios, eram punidas no combate à ociosidade e marginalização. E não parou por aí: a criminalização da cultura negra transpassa séculos mirando as religiões de matriz africana, as vestimentas e adereços de resistência do povo preto, os quilombos, hábitos, costumes e estilos musicais que descendem do cosmo negro.
Empoderamento: aqui ninguém zomba com a nossa cara preta
Surgido em 01 de novembro de 1974 no bairro da Liberdade, o bloco afro Ilê Aiyê, expressão do idioma iorubá que significa ‘nossa casa’ ou ‘nossa terra’, aconteceu no meio da ditadura militar que ao mesmo tempo jurava equilíbrio nas relações raciais no país e, horas depois, atacava ferozmente os integrantes do Movimento Negro. Cansados dessa hipocrisia e dispostos a colocarem a mão na massa para reais modificações na estrutura racista brasileira, dois jovens trabalhadores, Antônio Carlos dos Santos, o Vovô, e Apolônio de Jesus, o Popó, fundaram o Ilê.
Assessorados espiritualmente por Mãe Hilda (1923-2009), ialorixá do terreiro Ilê Axé Jitolu, personalidade fundamental tanto nos conselhos quanto na sólida base de força e axé na caminhada do bloco, era a matriarca que não deixava a corda arrebentar para o lado de seus filhos. Diante das ameaças policiais de barrar a intenção do bloco na avenida a partir de 1975, Mãe Hilda saía na frente do desfile para assegurar que se alguém quisesse mexer com a turma, primeiro ousaria passar por cima dela. E nunca ninguém a desautorizou.
Com quase 50 anos de estrada, o Ilê mantém firme o ritual religioso antes de dar início aos trabalhos do bloco no sábado de carnaval no alto da ladeira do Curuzu, na Senzala do Barro Preto. Quem estiver presente, e chegar cedo, vai poder presenciar a entrega do padê para Exu e da soltura de pombas brancas que simbolizam o desejo por paz e proteção durante todo o trajeto no carnaval. “Em 2023, o Ilê irá homenagear os centenários de Mãe Hilda e de Agostinho Neto, o primeiro presidente de Angola, herói nacional que possui uma forte contribuição poética. Ele foi um dos líderes africanos que influenciou a criação do Ilê Aiyê com o fato histórico da independência de Angola em 1975, uma referência para a diretoria do bloco”, acrescenta Sandro Teles, produtor artístico do Ilê.
Atuar numa instituição referência mundial na elevação da cultura negra é o que anima o professor de música e mestre de percussão do Ilê, Mário Pam, a desenvolver o seu ofício junto ao bloco. Ligado na responsabilidade de guiar a banda e seus alunos (inclusive as crianças da Band’erê) ao aprendizado em relação a cultura africana e os saberes aprendidos nos terreiros de candomblé, Pam salienta que os ritmos tocados e dançados no bloco, como o Ijexá (oriundo da Nigéria), chegaram por aqui através dos escravizados.
“Eu considero essa modalidade de professor de música africana voltado para tradição oral muito importante para a nossa sobrevivência e manutenção de nossas consciências como cidadãos pretos e pretas africanos no Brasil. Atuo como educador, sou uma liderança e mantenedor da cultura, uma espécie de griô ao recontar essas histórias para que elas não se percam”, considera Mário que já gravou com nomes como Daniela Mercury, Criolo, Gilberto Gil e a islandesa Björk.
Múltiplas belezas negras
Depois de dois anos sem carnaval em decorrência do cenário pandêmico da Covid-19, o Ilê, além de passar por problemas financeiros, se viu obrigado a cancelar outro importante acontecimento na comunidade, o concurso Deusa Ébano do Ilê. Este ano pela primeira vez desde a edição inicial em 1979, a Noite da Beleza Negra teve uma mulher trans entre as selecionadas. A vencedora foi a educadora social e dançarina Dalila Santos de Oliveira que ao ouvir seu nome como campeã, foi literalmente ao chão tamanha a felicidade. “Ser coroada como a Deusa do Ébano em 2023 possui um sabor ainda mais especial, esse é o carnaval da esperança, o momento de celebração da vida, depois de dois anos de tanta agonia e sofrimento. Vejo a minha escolha como uma oportunidade de mostrar à juventude feminina negra de Salvador que podemos e devemos sonhar, que somos lindas e o mundo também é nosso”, celebra a jovem.
Para a Empresa Salvador Turismo (Saltur) este será o melhor carnaval de todos os tempos e a expectativa é receber cerca de 800 mil turistas durante cinco dias de carnaval (sexta a terça). Já a Polícia Militar da Bahia, apesar de no passado ter tentado barrar o aquilombamento do Ilê e continuar realizando abordagens violentas contra a população negra e periférica, diz que irá promover uma Ronda Antirracista no Carnaval 2023. Promete acolher a população vulnerável e receber denúncias de atitudes criminosas em um ponto fixo na área interna do Passeio Público, no centro da cidade. Vamos ver para crer.
O Ilê também marca presença na Marquês de Sapucaí. O carnaval da escola de samba Mangueira vai levar ‘As Áfricas que a Bahia canta’ para desfilar no Sambódromo do Rio de Janeiro. O samba enredo da verde e rosa faz reverência ao Ilê que lota as ruas de Salvador nos três dias de folia. Lembrando que só saem os negões e negonas orgulhosos de sua narrativa, brancos não assumem o protagonismo no bloco. A emoção vai tomar conta de quem está com saudades de ver o Ilê passar.
Uma lenda viva do Carnaval da Bahia
Conversamos com o Vovô, um dos fundadores do Ilê Aiyê. Confiram o papo
“A consciência é o objetivo principal
Trecho de “Alienação”, composição de Sandro Teles e Mário Pam.
Eu quero muito mais
Além de esporte e carnaval, natural
Chega de eleger aqueles que têm
Se o poder é muito bom
Eu quero poder também”.
O Grito! – Como foi a formação do bloco?
Vovô – A formação do bloco se deu comigo e meu amigo Apolônio (Apolônio Souza de Jesus Filho, o Popó), nós tínhamos vontade de criar um bloco aqui na Liberdade, já existiam vários como os de afoxés, do pessoal que saía nas ruas vestido de indígena, escolas de samba, etc.. Nós observamos que nos maiores blocos, os mais famosos, não participavam negros e nem negras; os negros ali só atuavam tocando como músicos (na percussão ou bateria) e carregando as alegorias. Na época, em 1970, nós já tínhamos uma grande influência do Movimento Negro norte-americano em Salvador e pensamos em fazer um bloco chamado ‘Os brutos também amam’ (risos) ou ‘Poder Negro’, mas depois esses nomes foram descartados. Um dia, voltando do bairro de Itapuã, sentamos no largo do Curuzu e surgiu a ideia de fazer um bloco só de negão, daí nos empolgamos e na segunda-feira começamos a correia para organizar o inédito bloco afro que é o Ilê Aiyê.
OG!- Meio século de história, de lá, 1974, para cá, vê muitas mudanças?
Vovô – Muitas mudanças ocorreram e continuam acontecendo, a gente quer muito mais. A partir do primeiro desfile do Ilê, em 1975, começou a mudança na estética, na musicalidade, na cadência, no colorido do carnaval e principalmente no dia a dia do povo negro a partir das letras de músicas do bloco. São quase 50 anos de modificações no comportamento, o negro assumindo sua negritude, a criatividade no empreendedorismo, pois essas ideias começaram a ser socializadas. Veja, em 1976 surgiu o segundo bloco negro em Salvador e a partir daí surgiram blocos Brasil afora. Saber que essa nossa atitude impulsionou a possibilidade de outros blocos afro ao redor do mundo é gratificante. Aqui em Salvador houve o empoderamento, mas ainda falta muita coisa para acontecer.
OG! – Qual o legado que Mãe Hilda [também mãe biológica de Vovô] deixou para o bloco?
Vovô– Das mulheres serem mais empoderadas. A partir do momento que ela me falou que também sairia no bloco e, se caso um de seus filhos fosse preso, ela iria junto, isso para mim é um legado de coragem. Desde então, respeitamos muito a questão religiosa. Hoje, somos o bloco onde sai mais mulheres do que homens e ainda a maior concentração de gente de santo. Minha mãe sempre foi de atitude, participativa, foi a primeira a subir a Serra da Barriga (em União dos Palmares, Alagoas) para a celebração em homenagem ao Zumbi dos Palmares. Essa resistência que eu tento passar para o restante do bloco vem de Mãe Hilda.
OG! – Como trabalham a questão do racismo?
Vovô – De todas as formas possíveis: estética, música, encorajando o jovem negro a assumir a sua negritude sem vergonha de usar as suas roupas e nem de se posicionar. Eu fico triste quando ouço um negro dizer que nunca sofreu discriminação ou com vergonha de dizer que é cotista. Tem uma frase que eu uso muito, “Você pode ser rico, ter um salário legal e morar bem. Agora, não esqueça que você é negro, porque se você desmemoriar, alguém te lembra”, isso precisa estar no nosso cotidiano e DNA, o orgulho de ser negro. Se a gente começar a achar que a nossa situação melhorou e que tudo está normal, essa não é a realidade. Nada é normal aqui na Bahia, a cidade mais racista do mundo, precisamos estar todos os dias combatendo o racismo.
OG!- Mas já avançamos em algumas questões, concorda?
Vovô – Sim, bastante. Hoje estamos discutindo a questão de o negro ocupar os espaços de poder. Somos lindos, isso e aquilo, estamos sempre na frente da luta por melhoria e direitos, mas na hora de eleger os mandatários do Brasil, o poder fica nas mãos brancas. Apesar de todos os avanços, nós temos que continuar brigando para poder ter mais liberdade, igualdade e especialmente participação na mesa de decisão. Enquanto isso não acontecer, eu não ficarei satisfeito.
OG! – Fale um pouco sobre o impacto na comunidade. Para além do bloco na avenida no carnaval existe um trabalho que ocorre o ano inteiro. Valorização da negritude, projetos de educação e cultura, oficinas… o que acontece também com a iniciativa do bloco?
Vovô – Isso é muito importante. Ainda existem pessoas que reclamam que o Ilê faz pouco e precisa ser mais atuante. Mais do que nós já somos? Eu chamo isso de ‘ranço da escravidão mental’. O negro ainda está muito condicionado a combater o próprio negro, falta valorizar efetivamente a nossa extensa caminhada. Nosso carnaval é muito bonito, sim, todavia mais lindo ainda é o trabalho social que desenvolvemos na comunidade ao longo do ano. Formamos jovens, salvamos vidas negras, nos preocupamos tanto com a área profissional quanto na educação e oferecemos escola complementar. Mesmo assim tem gente na própria comunidade que reclama, quer só saber de ganhar a fantasia de graça para sair no carnaval, porém essa mentalidade precisa mudar. Ter a consciência do trabalho que o Ilê ainda segue construindo e impacta na sociedade baiana e brasileira. Antigamente, muita gente aqui no Curuzu alisava o cabelo, não tinha o hábito de usar turbante e assumir a sua negritude. Com o Ilê presente no bairro isso mudou e gerou até o empreendimento nos setores de beleza e vestimentas africanas. Só com o tempo vamos conseguir combater quem se posiciona com a mentalidade do ‘negô sim senhor’, que é uma posição acomodada de quem não questiona e acha normal tudo o que o branco faz, já com o irmão negro se sente com muita valentia e autoridade para reclamar.
OG! – Questão financeira: como o bloco é mantido e quais são os principais desafios?
Vovô – Passamos muita dificuldade, é desafiador manter uma organização desse porte. Às vezes parece coisa de outro mundo, sobrenatural, que conseguimos dar conta. A expectativa com esse novo governo é que a gente tenha novos parceiros no setor municipal e estadual. Os políticos ainda não entenderam que é importante ter um espaço como o nosso na Liberdade [imóvel número 228 da Rua do Curuzu, no bairro com o maior percentual de moradores negros da cidade], imagina então o setor privado. O povo negro, maioria em Salvador, consome de um tudo por aqui e esses caras não dão nenhum retorno. Em outros países como o Estados Unidos, por exemplo, onde a minoria é negra, existem os patrocínios. Aqui, você não percebe a cultura do voluntariado, das ações para ajudar a manter uma instituição. Eu, como figura respeitada e conhecida por todos, acham que sou rico porque apareço na televisão. Mas não é bem assim a situação financeira. É muito complicado fazer filantropia na Bahia e no Brasil, mas tomara que mude.
OG! – De qual maneira podem inspirar as próximas gerações a formarem outros blocos e coletivos?
Vovô – Acho que a inspiração já está feita. A visibilidade que o Ilê possui inspira a juventude de diversas maneiras, como as mulheres a participarem do concurso da Beleza Negra. Nosso objetivo é que surjam outros blocos pelo interior da Bahia, não apenas na capital. Através da música do Ilê Aiyê estamos conseguindo fazer essa grande transformação diária e que ela se espalhe cada vez mais.
Agora, nós estamos iniciando um projeto semelhante ao Ilê Aiyê em Maricá, região metropolitana do Rio de Janeiro. Levamos a iniciativa musical e de estética negra com palestras educacionais na comunidade jovem através de uma parceria com a prefeitura. Isso para mim é agir de forma eficaz. Desejo também ter essa abertura com as prefeituras do recôncavo baiano.
OG! – Porque a escolha afrocentrada de só permitir negros no bloco?
Vovô – Até hoje nós somos questionados sobre isso. Todo mundo admite que existe racismo na Bahia, entretanto ninguém é racista. Então, enquanto a gente não se sentir contemplado em relação às problemáticas raciais existentes, o foco da resistência vai continuar. Tá cheio de gente branca querendo sair no Ilê, eu já pensei até em fazer um sistema de cotas para isso, mas nós ainda não estamos preparados. Porque aí vão aparecer os ‘negros honorários’ até Quarta-Feira de Cinzas, e que depois não vão mais querer contar com a gente e a desigualdade continua. A gente ainda consegue se diferenciar em relação aos outros blocos afro daqui [que aceitam brancos como o Cortejo Afro, Olodum, Timbalada, etc..].
Por ora, até que se tenha negros ocupando para valer os diferentes espaços de poder, principalmente nos partidos políticos, quando pararem de nos usar como coeficientes no dia da eleição e permitirem a nossa ocupação, tudo bem. Como isso não ocorreu, a postura do Ilê Aiyê irá continuar dessa forma.
Serviço
Bloco Ilê Aiyê Carnaval de Salvador 2023
Datas: sábado (18/02) a partir das 21hs no Curuzu. Segunda-feira (20/02), às 20hs no Circuito Osmar, no Campo Grande, e na terça-feira (21/02), às 21hs, Pipoca do Ilê Aiyê, no Circuito Osmar, no Campo Grande.
Valores: a fantasia do bloco R$ 600,00.Informações: ileaiye@ileaiye.org.br / Instagram @blocoileaiye