O Auto da Compadecida 2
Guel Arraes e Flávia Lacerda
BRA, 2022, 1h54. Comédia. Distribuição: H2O Filmes
Com Selton Mello, Matheus Nachtergaele, Eduardo Sterblitch, Humberto Martins
De frente para a tela em branco, reflito sobre o que escreverei a seguir e proponho-me, de imediato, o desafio: esforçar-me ao máximo para evitar uma análise comparativa entre O Auto da Compadecida 2 com a primogênita obra, fenômeno do audiovisual brasileiro no final do século 20. Nas recentes sessões de pré-estreias do filme pelo país, o elenco tem definido a nova produção como uma celebração – mais do que uma continuação propriamente dita. Partamos deste pressuposto e tentemos, se possível, analisá-la individualmente.
A narrativa atual se passa 20 anos após os acontecimentos do primeiro filme: reencontramos a inigualável dupla Chicó (Selton Mello) e João Grilo (Matheus Nachtergaele) na velha Taperoá, desta vez cenograficamente criada em estúdio e com forte auxílio de efeitos visuais. Na narrativa, os personagens estavam realmente afastados por motivos que, ao longo da projeção, conheceremos. Estratégia interessante do roteiro; a ideia de reencontro permeia todo o longa (tanto pelo curso dos personagens em cena, quanto pela própria experiência do público em redescobrir aquela história).
Desta vez, dois candidatos a prefeito se engalfinham para vencer a peleja: o coronel Ernani (Humberto Martins), bruto fazendeiro da região, e o magnata Arlindo (Eduardo Sterblitch), empresário e dono da rádio local. Com o entrevero político de pano de fundo, O Auto da Compadecida 2 descortina uma série de novas adversidades ao frouxo Chicó e ao astuto João Grilo. Naturalmente, fãs da obra de Ariano Suassuna, transformada em série televisiva em 1999 por Guel Arraes (lançada, um ano depois, em versão reduzida, nos cinemas), ficarão felizes em rever Selton Mello dando vida, uma vez mais, aos trejeitos agoniados de Chicó. Como não se emocionar com Nachtergaele nas vestes do icônico Grilo, que tem um lugar de afetividade tão único no imaginário do espectador brasileiro?
O fato é que, como “filme isolado”, O Auto 2 perece de um texto cativante; são falas quase sempre autorreferentes ao primeiro filme, sem vida própria. Funcionam como homenagem à obra e ao próprio Ariano Suassuna, mas acaba por afivelar o enredo atual em historietas improlíferas, descuidadas mesmo no desenvolvimento dos novos personagens. Sobre as adições ao elenco, todos estão competentes em suas interpretações, com destaque para Luís Miranda. Incomoda-me a decisão de escalar atores sudestinos (como Fabíula Nascimento e o já citado Humberto Martins) para, em pleno 2024, interpretarem personagens do Nordeste, com o sotaque carregado típico das produções Globo.
Ao demarcar a composição geográfica de Taperoá em estúdio, imaginei que o filme se aproximaria dos dispositivos cênicos do teatro (modo de ressaltar a origem do texto de Ariano, escrito como peça). Entretanto, a narrativa se atrela mais à linguagem da dramaturgia televisiva, desde o arranjo dos planos até a inserção excessiva das músicas em momentos-chave, para enfatizar a emoção. Há espaço, inclusive, como vemos nas novelas de tevê, para o merchandising dentro das cenas: momentos nos quais é evidente a presença das marcas patrocinadoras, como Brahma e Santa Helena.
Quando abraça o caricatural (como nas sequências em que Luís Miranda interpreta vários personagens, nos moldes de trupe teatral), O Auto da Compadecida 2 é mais satisfatório, sendo salvo pelo humor. Mas a narrativa tende a momentos dramáticos destoantes, como quando Chicó revela o próprio analfabetismo para Rosinha. Guel Arraes e Flávia Lacerda acertam quando investem na sutileza: durante a passagem de João Grilo pelo Rio de Janeiro, há talvez a cena mais bela do filme, numa sala de cinema. Estão ali a Arte e o povo sertanejo, sofrido, reflexo do próprio protagonista que se enxerga na tela e, emocionado, decide voltar à sua terra natal.
É insuficiente para uma obra que, baseada na genial mente de Ariano Suassuna, se mostra um exercício de restrita criatividade. Talvez na confiança de que ao público bastará ver os personagens com o figurino característico, repetindo as marcantes frases como não sei, só sei que foi assim, O Auto da Compadecida 2 se sujeita a permanecer num lugar seguro de soluções previsíveis. Uma celebração sem tanto encanto.
Leia mais críticas
- “Nosferatu”: remake corporifica o pesadelo gótico do clássico de F.W. Murnau
- “O Auto da Compadecida 2”: a difícil tarefa de reimaginar Ariano Suassuna
- “As Polacas”: melodrama de João Jardim nasce datado e desperdiça eficiência do elenco
- “Queer”: Quando desejo e drogas alucinógenas se dão os braços
- “Clube das Mulheres de Negócios”: boas ideias esbarram em narrativa acidentada