ALÉM DO TEMPO E DO ESPAÇO
Por Rafael Dias
Jorge Luis Borges era um exímio contador de parábolas. Tudo que via, ouvia ou lia ele decodificava em símbolos e histórias como uma alegoria do fugidio. Mesmo absorto na sondagem metafísica, sempre transpôs as abstrações para a realidade. Talvez por essa conjugação entre o físico e supra-real é que o escritor argentino, falecido há mais de 20 anos, mantenha uma obra com frescor universal. Ano passado, todos seus títulos começaram a ser republicados pela Companhia das Letras, que comprou os direitos de copyright da editora Globo, responsável pela obra de Borges no Brasil, resultando em quatro primeiros volumes. Agora o público tem acesso a mais três livros da safra borgesiana: Discussão, O Fazedor e O Aleph, este, provavelmente, sua maior obra-prima.
Publicado em 1949, O Aleph é uma compilação de 17 contos curtos que condensa a liturgia narrativa de Borges no que há de mais imponente. É, pois, um de seus livros mais emblemáticos quanto ao estilo e temas mais caros. É nele que vemos destoar as influências mais fortes da literatura borgesiana, marcada pela linguagem burilada e por referências a obras-chave da literatura mundial, como A Divina Comédia, de Dante Alighieri, O Castelo, de Franz Kakfa e Os Lusíadas, de Camões. Com evocações à tradição clássica, misturadas a reflexões de filosofia, teologia, ficção e cultura enciclopédica, Borges investiga os limites da eternidade e da finitude em histórias sobre amor, morte, fé e poder. Por se debruçar sobre temas essenciais, não seria exagero afirmar que O Aleph é um livro seminal.
Nos contos, passeia-se da dúvida existencial de “Os teólogos”, busca pelo elixir da vida em “O imortal” e à transcendência espiritual “O Aleph”, que origina o título do livro. Este dois últimos e “O Zahir” são os melhores momentos da obra, pela forma com que compõem a realidade sob os campos opostos do destino e da sublimação. Borges também tinha um apreço especial pela cultura dos pampas gaúchos; não vivia só de abstrações. De certa forma, também se solidarizava com a fatalidade dos homens que lutavam pela vida no campo, em que muitos morriam em emboscadas e traições, como em Biografia de Tadeo Isidoro Cruz. O universo inextricável de labirintos e interrogações, muitas vezes absurda, tece a rica tessitura da literatura de Borges, que guarda ecos com estilo soturno de Kafka.
A riqueza da narrativa torna-se evidente não apenas no enredo, mas sobretudo nas divagações metafísicas a ponto de adquirir um tom quase ensaístico. Além de contar histórias de maneira envolvente, Borges cria impacto com frases de efeito como “absurdo imaginar que homens que não chegaram à palavra cheguem à escrita” ou “ser imortal é insignificante; exceto o homem, todas as criaturas o são, pois ignoram a morte”. É interessante também o recursos de metáforas e elipses. No conto O Aleph, o personagem Carlos Danieri depara-se no porão de casa com um grande achado, um ponto para onde convergem todos os pontos, chamado de “o aleph” (alfa, em alfabeto hebraico). Com essa peça alegórica, o autor sobrepõe o tempo para perscrutar o espaço, ou seja, as fronteiras físicas e a capacidade física do nosso corpo.
Ao lado de Adolfo Bioy Casares, Julio Cortazar e Gabriel García Márquez, Jorge Luis Borges é talvez o maior artífice do realismo mágico latino-americano. Merece estar na estante de todo leitor não só pela sua importância entre as vertentes literárias, mas também pelo seu valor crítico e o olhar poético único sobre a prosa clássica e bem feita.