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Filme é baseado em história real vivida nos anos 1960. (Divulgação).

O Acontecimento: entre a liberdade de viver e o horror do aborto clandestino

Baseado em romance autobiográfico de Annie Ernaux, longa francês narra a jornada angustiante de estudante que decide abortar

O Acontecimento: entre a liberdade de viver e o horror do aborto clandestino
4.6

O Acontecimento
Audrey Diwan
L’Evénément, FRA, 2022, 16 anos. Distribuição: Zeta Filmes
Com Anamaria Vartolomei, Luana Bajrami, Louise Orry-Diquero

Uma jovem universitária francesa descobre que está grávida. Ela decide não ter o filho, porém o aborto é proibido. Não só isso: todas as pessoas que a ajudarem poderão ser acusadas de um crime. Mas ela está empenhada em seguir com o rumo de sua vida e vai empreender uma série de ações para realizar um aborto clandestino, apesar de todos os riscos que isso envolve.

O enredo que abre este texto é o mote principal de O Acontecimento, longa de Audrey Diwan, que estreia nesta semana nos cinemas brasileiros. Mas é também a realidade de muitas mulheres brasileiras, que vivem em um estado de bastante insegurança em relação ao destino de seus próprios corpos. Era essa a realidade de Annie Ernaux, escritora francesa cujo livro de mesmo nome serve de base para este longa. A obra foi lançada em 2000 e ganhou edição brasileira pela editora Fósforo este ano.

Ernaux era uma estudante de letras em 1963, época em que aborto não só era um crime como um enorme tabu na França. Moradora da cidade provinciana de Angoulême, ela vivenciava uma sociedade às vésperas da revolução sexual e política que aconteceria apenas alguns anos depois, ainda que a interrupção voluntária da gravidez só viesse a ser legalizada no país em 1975.

Annie, a protagonista da história, até afirma em certo momento que gostaria de ter filho, mas não àquela altura da vida, prestes a terminar os estudos. Ela é uma talentosa estudante de literatura, vista pelos professores como uma promessa e que sonha em se tornar escritora. “Não quero ter uma vida em detrimento de outra”, diz ela, atônita, a um médico que lhe confirma a gravidez.

Ameaçada de ter seus sonhos destruídos, Anne sabe o preço dessa liberdade e, por isso, vai em busca de um aborto clandestino ao mesmo tempo em que precisará lidar com a escalada de hostilidade de todos ao seu redor, de médicos nada comprometidos com o bem-estar das mulheres aos colegas de universidade, que pouco a pouco a abandonam. Filha de pais orgulhosos, oriundos da classe trabalhadora, ela não pode contar com a ajuda de sua família, nem de professores, sob o risco de ser presa.

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Audrey Diwan focou a história em sua protagonista, o que deu um ar universal ao filme. (Divulgação).

Audrey Diwan, diretora de origem libanesa, coloca a protagonista como fio condutor de sua trama e afasta o espectador de qualquer possibilidade de interferência do olhar alheio. É um exercício de empatia enorme que nos coloca não como testemunha distante, mas alguém que está ali, vivenciando tudo ao mesmo tempo de Annie. O drama é bem estruturado e reflete muito o estado mental da personagem, da negação da realidade no início da trama, ao sentimento de pânico à medida que a gravidez avança, semana a semana. Com uma personagem acuada e solitária em sua angústia, o filme ganha contornos de um thriller de horror.

Diwan constrói a narrativa sem abrir espaço para condescendência nem julgamentos da plateia. Não há, por exemplo, a cena da concepção, pois, a priori, isso não importa quando falamos da decisão da mulher em abortar. Também não há interesse em construir camadas de complexidade em personagens contrários à decisão de Annie, como os médicos e autoridades masculinas com quem ela interage: eles estão ali como representantes de um sistema opressor e violento. E tudo é filmado de maneira muito transparente, para que essas emoções cheguem de forma muito direta, sem filtros. Em certo momento do filme, por exemplo, vemos Annie seminua tentando, ela mesma, interromper a gravidez com uma agulha de tricô.

Essas decisões narrativas da diretora colocam o drama pessoal em primeiro plano, conferindo ao filme um aspecto existencial: até onde conseguimos ir em nome da liberdade? Não se trata de um filme sobre a história do aborto da França, mas sim sobre uma experiência real vivenciada por uma mulher. Ao focar no drama de Annie sem abrir espaço para nada exterior a isso, Diwan torna seu filme algo universal, sobretudo em um mundo que vivencia uma escalada retrógrada em relação ao aborto. É como se o longa colocasse o aborto como ele de fato é: uma questão de saúde, de liberdade, não afeito a “opiniões”. Do modo como o longa está estruturado, a pergunta possível de ser feita é: “por que alguém precisa sofrer dessa maneira? em nome de que?”. Em uma passagem muito poderosa, que revela um pouco da tenacidade da protagonista, o professor estranha a queda em seu rendimento escolar e pergunta se ela ficou doente. “Estive acometida da doença que atinge apenas as mulheres. E que as condena a se tornarem donas de casa”, responde.

O trabalho de interpretação da estreante Anamaria Vartolomei, atriz de origem franco-romena, é impressionante. Ela consegue traduzir o estado de pânico vivenciado pela personagem a partir de pequenos detalhes no olhar e nos movimentos. E quando as cenas pedem puros arroubos de horror e dor, ela se coloca em entrega total. É um papel bastante difícil, pois requer transitar por esses diferentes estados mentais.

O filme de Diwan é corajoso em centrar seu olhar na experiência da mulher, liberando sua narrativa de qualquer discurso, moralismo, explicações. Deixa claro que a proibição do aborto apenas joga as mulheres para a clandestinidade, com toda angústia, perigos e riscos de morte que isso envolve. Esse foi o preço que Annie escolheu pagar pela liberdade. E o que milhões de mulheres em todo o mundo ainda precisam enfrentar.