Não! Não Olhe!
Jordan Peele
Nope, EUA, 2022, 14 anos, 2h10. Distribuição: Universal
Com Daniel Kaluuya, Keke Palmer, Steven Yuen
Fica difícil olhar os cartazes promocionais e o título do novo filme de Jordan Peele sem lembrar de um lançamento cinematográfico recente, também este a tratar de algum tipo de perigo vindo do céu, sendo que em uma chave de comentário político mais jocoso e cínico; estamos falando de Não Olhe Para Cima (Don’t Look Up, de Adam McKay), produto da Netflix que surgiu nas plataformas pelo mundo no final do ano passado. O comando negativo e proibitivo em relação a algo gera, como se sabe, justamente o efeito oposto; ou seja, vamos todos querer olhar para cima. Em Não! Não Olhe (Nope, 2022), o terceiro e mais novo trabalho de Peele, a máxima de não encarar o seu inimigo de frente, literalmente, pode te fazer escapar de uma ameaça extra-humana.
A partir da habilidade do protagonista Otis “OJ” Haywood Jr. (Daniel Kaluuya) de lidar com animais, aqui mais especificamente cavalos, a trama o coloca nesta posição de herói ordinário, acostumado a conviver diante dos outros em uma frequência introspectiva, diminuta; em contraposição total com a sua irmã, a histriônica, maior-que-a-vida, comediante e barulhenta Emerald, ou Em (Keke Palmer), que reaparece na vida de Otis trazendo consigo justamente uma espécie de aventura-de-verão em que ambos precisarão unir forças para conseguir não apenas salvar as próprias vidas, mas também o rancho fincado no meio do deserto onde a família construiu um empreendimento secular. Tal empresa, que é responsável pelo sustento dessa família até hoje, passa a ser local de visitas frequentes de uma espécie de entidade monstruosa flutuante de origem e propósitos totalmente desconhecidos.
A paisagem aqui é importante, pois Peele parece querer produzir o seu próprio e particular faroeste, em mais uma de suas incursões e apreços pelo gênero cinematográfico; o escolhido da vez sendo este tipo de produção, basilar e constituinte na formação do cinema norte-americano, marcadamente ambientada em cenários desérticos, montanhosos e isolados, constituindo um dos principais formatos de Hollywood por muitas décadas, e uma seara totalmente dominada pela indústria branca, heterossexual e protestante.
Outro signo primordial para este gênero, o cavalo, é ostensivamente reiterado aqui, a partir da ideia do pequeno empreendimento organizado pelo protagonista e seu recém-falecido avô, uma espécie de locatária de equinos, principalmente para fins de entretenimento, alugando os animais para filmes, comerciais e produções em geral. Próxima à fazenda de Otis há um outro negócio do ramo de entretenimento liderado por Ricky “Jupe” Park (Steven Yeun), um ex-astro mirim asiático “fantasiado” de cowboy, que toca o seu parque temático no meio do nada de uma forma peculiar. Peele, assim, não só coloca personagens não-brancos interpretando arquétipos da masculinidade norte-americana dentro de um gênero conservador e “bruto” como o faroeste, deslocando-o, de certa forma, de sua origem, mas também o faz quando traz para junto de tudo isto uma narrativa de ficção científica com horror; é uma das misturas mais interessantes realizadas, até aqui, pelo cineasta.
Mas, justamente, por tentar conciliar tantos registros distintos, o filme pareça confuso, e com certeza se revela ambicioso em sua escala de execução, de tomadas abertas dos cenários enormes, do escopo engrandecido pelas cenas no deserto. Diferentemente de Corra! (Get Out, 2017) e Nós (Us, 2019), os dois primeiros trabalhos do diretor, realizados em uma proporção menor, tanto do ponto de vista da trama, quanto da produção e orçamento, aqui o teor alienígena da situação requer e demanda por esta abordagem grandiloquente das sequências de ação e fuga da maioria dos personagens. São, sem dúvida, as melhores partes da narrativa. Já quando tenta dar complexidade e profundidade aos tipos de relação desencadeados na tela, Peele parece falhar, e não atingir o mesmo nível de comprometimento e afinação dos seus longas anteriores. Tudo bem, aqui temos um monstro alienígena gigante que precisa ser derrotado, basicamente.
Otis e Em estão sendo atacados, e a ameaça desta vez, diferentemente de Corra!, quando o perigo surgia justamente da pessoa ao seu lado, e de Nós, em que o ataque emergia precisamente do subterrâneo, se faz sobrevoar acima dos personagens na forma de um ser voador capaz de sugar tudo pela sua frente.
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Sendo assim, Não! Não Olhe! consegue agrupar uma série de elementos interessantíssimos, os reunindo em cena por meio de uma visualidade atraente, aventureira, como em um típico filme de ação, um genuíno blockbuster de verão, mas protagonizado por personagens não tão carismáticos ou desenvolvidos, deixando a audiência sem se importar muito com eles. Diante de uma ameaça tão desproporcional e ameaçadora, surgida de repente, talvez fosse de se esperar uma ânsia e desejo maiores dos protagonistas em tentar uma conexão mais profunda, mesmo que desenrolada em uma situação-limite como esta.
De fato, pela velocidade dos acontecimentos e a sucessão relâmpago deles, não parece haver e caber muito tempo para se repensar antigas mágoas e heranças familiares; mas Peele acena querer seguir nesta direção, em algum momento, e simplesmente desiste no meio do caminho, desperdiçando uma oportunidade de deixar a história bem mais interessante. Depois de uma trajetória tão especial com seus dois lançamentos anteriores, Peele parece ter recuado brevemente neste seu terceiro e último filme, ou pelo menos parado ligeiramente, com uma ligeira vontade de descanso. Quem sabe decidiu desacelerar um pouco e olhar para cima. Nada de errado nisso tudo, mas só desejamos intensamente que ele não seja sugado pelo monstro no final e possa se safar o quanto antes, voltando ao seu caminho e podendo, assim, oferecer a todos nós outras melhores e mais instigantes obras, retomando a sua até então excitante e especial jornada por estas paisagens e lugares tão únicos, diferentes e estranhos.
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