Tranquilizer 1
Tranquilizer 1

Novo disco do Oneohtrix Point Never contorna a impermanência da memória

No tempo em que tudo é armazenado em arquivos digitais instáveis, prontos para permanentemente desaparecem, "Tranquilizer" busca o que sobra: alguma beleza

Novo disco do Oneohtrix Point Never contorna a impermanência da memória
4

Oneohtrix Point Never
Tranquilizer
Warp, 2025. Gênero: Experimental

A cada capítulo de sua discografia, Oneohtrix Point Never, o celebrado projeto de Daniel Lopatin, parece se debruçar sobre aspectos distintos dessa relação fascinante entre o próprio tempo e a nossa cultura – a da vida íntima e a social-coletiva. Lopatin realiza suas obras como parte de um processo composicional e estético, seja em restrições materiais, como o uso estrito de instrumentos MIDI vide o potente R Plus Seven (2013), ou em direcionamentos conceituais específicos como em Garden Of Delete (2015).

No caso do novo trabalho, Daniel parte de um arquivo de samples encontrado na internet em meados de 2020 que, subitamente, desapareceu. Depois de seguir em frente e lançar Again em 2023, a página retorna ao ar e, daí, concebe à Lopatin o primeiro vislumbre de seu novo disco. A grande surpresa de Tranquilizer é se distanciar de uma melancolia que acomete parte de seus trabalhos para se atentar a alguma das grandes e dolorosas belezas: a perda, ou a própria impermanência. Tranquilizer não é o som da sedação, mas do ressurgimento”, diz nos materiais de divulgação.

Em entrevista para a Tone Glow em outubro desse ano, o artista comenta a vontade de “capturar o registo emocional de uma era em que tudo é arquivado, mas perpetuamente se esvai”. Esse desejo não foge de outros resultados já alcançados em sua discografia, já que sempre se utiliza da matéria do tempo de seus sons para trazer sensações específicas, mas o faz aqui de uma forma muito mais serena e menos angustiante que outros trabalhos. “Tranquilizer”, neste sentido, flui.

Talvez, por isso, pela menor quantidade de fissuras abruptas entre seus elementos e por um caráter mais contínuo entre suas ideias, este novo álbum soa um dos mais acessíveis de sua carreira. É, nesse sentido, uma grande surpresa, já que a temática motora do trabalho poderia incluir uma espécie de instabilidade, inconsistência e fragilidade em suas peças. O que o trabalho faz é oposto. Mesmo que ainda fugaz, e diverso, são nas múltiplas camadas e no crescimento de pequenos elementos que o disco se realiza.

Ótimo exemplo disso é “Measuring Ruins”, faixa que se aproxima de uma proposta mais ambiente, não fossem os múltiplos ruídos cintilantes e um movimento enérgico de algumas de suas porções a afastá-la e colocá-la em uma intersecção entre a continuidade de sintetizadores e os estímulos ativos das interpolações dos samples. Apesar de sua multiplicidade, a faixa se realiza em uma crescente, como se da impermanência desses elementos, algo permanecesse, alguma beleza.

O sopro tímido, mas marcante da faixa seguinte “Modern Lust”, ilustra com precisão o sentimento. Aponta para algo entre as músicas pop oitentistas e linguagem jazzística mas sem cobrir a faixa com sua resolução estética. Muito pelo contrário, mantém-se tímido, deixando a ambiguidade dos outros elementos cobrirem seu significante em um jogo de interpretação clássico de Daniel. Rapidamente o sopro se desvanece, mas não como perda. Os cortes aqui não machucam como em “Réplica” (2011) ou no já citado “R Plus Seven” (2013). Os sons florescem.

O disco inteiro parece seguir essa lógica que trafega entre uma inquientante continuidade e o vazio deixado pela tendência entrópica de sua construção: as faixas beiram o desmoronamento de suas estruturas, mas Lopatin, ao contrário de outros trabalhos, mantém firme alguma vértebra que sustente estabilidade. Por essa forma, as faixas parecem se conterem em seus próprios contornos. Me chegam metáforas de fluxo sanguíneo, matéria orgânica em movimento, vida mesmo, sobretudo pelo aspecto granular de algumas obras aqui, como “Bell Scanner” ilustra. O videoclipe de “Lifeworld”, primeiro single do disco, propõe em linguagem visual essa dinâmica “Beavers/Belson minimalista/romântica cósmica que liga eventos regulares e cotidianos a estrelas em explosão e outras coisas do género”, como o próprio Lopatin define.  

No caso sonoro é, também, uma questão de escala. A repetição contínua de alguns elementos e o processo de adição de camadas sonoras em sobreposição aponta para o senso de perspectiva. Enquanto pequenos glitchs e estalos se encontram em primeiro plano, uma grande massa sonora se apresenta em movimento múltiplo ao fundo, e esses diferentes corpos começam a se invadir, seus espaços se encontram, e diluem-se. Movimentos de imensa natureza encostam na pequena falha digital. Ainda quando é possível reconhecer diferentes tempos culturais nesses elementos, Lopatin sonoriza o colapso do tempo, de tudo. Isso vale para grande parte da discografia de Oneohtrix.

image 1

Daniel Lopatin (Oneohtrix Point Never) por Aidan Zamiri

A música de Oneohtrix parte de um pressuposto muito objetivo: o de que sons carregam em si, por sua própria vida cultural, sensações de tempo. Utilizar samples de arquivos de uma década específica, ou seja, modelos sonoros do que seria moderno em sua época, é materializar isso de forma muito direta. O arquivo, neste caso, funciona como uma cápsula do tempo, ou o próprio tempo enclausurado nesses sons. Disso, a obra de Daniel Lopatin parece brincar com ponteiros, assimilar anacronismos ou mergulhar em nostalgias.

Em “D.I.S”, o baixo acústico jazzístico, a voz de ópera seguida por uma guitarra em vibrato meio soul trás um vislumbre dessa convolução de tempos distintos muito potente, muito ilustrativo da temporalidade digital, essa em que o próprio espaço se dilui pela simultaneidade de tudo. Num arrastar de dedos a revolução estética de uma época antiga atravessa o shitpost, e nessa convolução a quantidade de informação sobrecarrega a cabeça, não tenha dúvida. A diferença é que Lopatin em “Tranquilizer” não trata isso como angústia. Essa carga de tempo múltipla aparece com fascínio. Poderia até falar em algum tipo de otimismo ou, no mínimo deslumbramento. E hoje isso é raro, bonito.

Isso não significa dizer que o trabalho encara o novo tempo de uma forma pacífica. Muito pelo contrário, há algo de irônico em nomear seu trabalho de “tranquilizante”: “para mim, era sobre o duplo sentido: vou obrigar-te a relaxar (risos). Temos de ser humanos, temos de sonhar, temos de acordar. Temos de ser românticos em relação a este momento, mesmo que seja sombrio — temos de ser românticos com o que temos”.

Aqui, Lopatin se presta ao papel de romantizar a esmagadora quantidade de informação, de tempos atravessados, das histórias do mundo e cintilar da memória. Sobretudo, do nosso paradoxo comum – o do digital decair-se em apagamento sepulcral, ao passo de que nossa história como nunca antes e, cada vez mais, só pode ser acessada em seus arquivos.

Apesar de trazer a mudança com mais leveza, tudo está, de fato, em constante movimento. Nada se resolve de maneira simples, tudo parece estar em transfiguração. Mas mesmo com essa impermanência, a incapacidade desses sons em permanecerem, Lopatin busca uma fresta: “toda essa vida — de algo que brilha e ganha vida, que se retrai e retorna — é simplesmente tão bonita”, comenta em entrevista.

Por isso, Tranquilizer demonstra um artista muito bem resolvido com sua proposta. Aqui, Lopatin não se enluta, mas, de algum modo, celebra essa impermanência. Se a condição material dos nossos sons – ou de nossa história – é desaparecer, que o faça cintilante, aparente, viçoso. Que sua perda nos faça perceber sua própria beleza.

Leia mais críticas