NEGGS
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Novo álbum de Yangprj e Neggs retrata o Piaui real indo cada vez mais fundo ao inferno

Cru, revolucionário e artesanal, dupla de Teresina recusa a indústria e reafirma o rap como arte de sobrevivência

Neggs e Yangprj
Libertador
Independente, 2025. Gênero: Rap

Zona Norte de Teresina, Piauí, 2025. É imerso nesse território de calor e concreto que emerge o espírito histórico-geográfico que Libertador, segundo álbum da dupla Neggs e Yangprj, tenta capturar. Sucessor direto de Vivos e Traídos, Mortos e Lembrados (2024), o disco é mais incisivo em seu discurso do que o antecessor e menos funk do que a mixtape de estreia da dupla, Cachorro da Norte Mixtape (2023). Categórico, o projeto se define por um único adjetivo: é um álbum DE RAP — assim mesmo, em caixa alta. 

As 13 faixas que o compõem arrastam o ouvinte para o fundo do fluxo de consciência dos autores, revelando um retrato lúcido de uma das menores economias do Nordeste. No Piauí, o inferno social não é metáfora.

Ano após ano, o Estado escala o ranking das piores estatísticas nacionais. Ocupa o 24º lugar no IDHM (Índice de Desenvolvimento Humano Municipal), tem a segunda maior taxa de analfabetismo e, entre 2012 e 2022, viu os homicídios crescerem enquanto o descaso estatal abriu espaço para o avanço de poderes paralelos. É desse chão que Libertador fala.

Já no início, um piano denso abre “Intro Proversos”, primeira faixa do álbum. As referências e reverências aos Racionais MC’s, são inevitáveis. Mas é difícil não se questionar: e se Mano Brown, Ice Blue, Edi Rock e KL Jay tivessem vivido não sob o cinza da São Paulo dos anos 1990, mas sob o sol implacável e as promessas vazias do Nordeste profundo? E se o rap, em vez de caminho de ascensão, fosse apenas mais um beco sem saída? Nesse cenário, “contrariar as estatísticas” significa atestar a própria existência.

A pergunta central do álbum é incontornável: como escapar do sistema quando o próprio sistema molda a desesperança? A liberdade, aqui, pode residir nos alívios simples de viver um dia após o outro — nos momentos banais do cotidiano, como andar descalço, sentar no meio fio e dividir um maço de cigarro, como aponta Neggs na faixa-título.

Liricamente, o rapper piauiense, que assina todas as letras do disco, enfrenta o esvaziamento simbólico do rap — a onda de idolos de Instagram, as bets, os tigrinhos e discursos motivacionais travestidos de consciência — enquanto parece lutar contra o próprio vazio interno. A profundidade sobressai quando o artista recusa a armadilha do “herói underground” e admite não ser tão durão quanto parece. “Desculpa pra quem é meu fã, não sou um cara dahora”, dispara em determinado momento.

Libertador é um disco de texturas ásperas: menos polido, mais bruto; menos navalha, mais machado. A produção dirigida por Yangprj  aposta em uma mixagem propositalmente suja em beats espaçados e mais lentos.  Ruídos e chiados são assumidos como parte do som em uma estética que não quer e definitivamente não almeja soar limpa, mas verdadeira.

A honestidade transborda e é a força motriz de um álbum que não tenta salvar ninguém. Nem mesmo a si próprio. A imagem do Cristo preto com armas e correntes quebradas, ilustrada em giz na capa, não é assumida explicitamente pelos autores, mas funciona como alerta: a revolução virá, não no sentido marxista da coisa, mas de alguma forma ela tende a vir. A semente está plantada. E a cada vez que o ódio de classe e raça é incitado, mais próximo ela fica de germinar. É inevitável — ou pelo menos é o que espera-se. 

É improvável que Libertador figure nas listas de grandes lançamentos do ano ao lado de nomes como BK’ e Don L. Não por falta de qualidade — muito pelo contrário. Mas talvez esse seja o ponto: o álbum recusa o enquadramento. Carrega o fardo — e a beleza — de ser visceral, imperfeito e orgânico. Fala de dentro para dentro, “do gueto do gueto” como diriam os integrantes do grupo Costa a Costa . Uma crônica de um lugar onde a liberdade é luxo e a arte existe para demarcar um grito, como um pixo. Uma arte rupestre musicada.

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