Os jornais impressos sensacionalistas, os famosos “espremeu sai sangue”, sempre tiveram leitores fiéis, aqui e alhures. Sob a alcunha de jornalismo popular, na Inglaterra – terra do famoso The Sun –, na França, nos Estados Unidos e, também, no Brasil, eles fizeram e fazem sucesso por noticiarem escândalos, crimes bárbaros, casos bizarros e exporem esses acontecimentos com manchetes espalhafatosas e fotos chocantes.
No Recife, o extinto Diário da Noite, nos anos 70 e 80, e posteriormente a Folha de Pernambuco – logo quando foi lançada – também apelavam para esse expediente. Não raro, histórias mal contadas e boatos, eram noticiados e ajudavam no aumento das vendas, como é caso da famosa “Perna Cabeluda” que se tornou uma lenda urbana do Recife. No Rio de Janeiro o Extra e O Dia entram nessa lista e, em São Paulo, o já desaparecido Notícias Populares (NP), que integrava o Grupo Folha, é talvez o mais famoso deles. E é exatamente o jornal paulistano, o mote da nova série do Canal Brasil, cuja estreia acontece nesta sexta (29).
Em sete episódios, a série Notícias Populares é uma criação do jornalista André Barcinski e do cineasta Marcelo Caetano, que também a dirige. Ela conta, de forma divertida, histórias inspiradas em fatos noticiados pelo jornal que circulou em São Paulo por 38 anos, entre outubro de 1963 e janeiro de 2001.
O fio condutor da trama é a chegada da jornalista Paloma (Luciana Paes), ex-correspondente da Folha de São Paulo em Paris, convidada para dirigir a redação do NP, no início dos anos 1990, com a missão de aumentar o número de leitores e salvá-lo de uma crise. Em geral, os jornais populares não tinham esquema de assinantes e se sustentavam com a venda nas bancas. Suas capas eram expostas pelos donos dos quiosques e quanto mais sensacional ela fosse, mais exemplares eram comprados.
Ao chegar na redação do Notícias Populares, Paloma se depara então com uma equipe de repórteres cujos métodos de trabalho e de apuração são questionáveis, mas por eles justificado pelo fato de quanto mais atraente e absurda fosse a capa, mais o jornal vendia. Do editor-chefe Matias (Rui Ricardo Dias) a colunista de celebridades Greta (Ana Flávia Cavalcanti), o fotógrafo Conrad (Ary França) e até o foca Adilson (Lucas Andrade), tudo é válido para se ter uma boa manchete e a nova chefe de reportagem precisa de muito jogo de cintura diante de casos espetaculares como a famosa história do bebê diabo e da rebelião das prostitutas, para manter o NP em alta.
Segundo os criadores – Barcinski inclusive trabalhou no Notícias Populares – os personagens da série não existiram, mas são inspirados nos jornalistas que atuaram na redação do NP. Nesse sentido, a série reconstitui com muita precisão o ambiente real do jornal, cuja redação era bem diferente de sua irmã considerada mais nobre, a Folha de São Paulo. O clima meio caótico, as situações bizarras, as figuras esquisitas transitando entre birôs e máquinas de escrever, as conversas beirando o surreal era o cotidiano do diário e isto está muito bem retratado nos episódios da série.
A ideia dos realizadores desde o início foi ter como argumento para cada episódio, uma notícia que de fato aconteceu e causou grande repercussão. Para selecioná-las eles pesquisaram mais de mil exemplares do Notícias Populares, realizaram inúmeras entrevistas e reviraram os acervos de fotos e vídeos que ajudaram a compor a estética visual da série, do figurino a cenografia. Notícias Populares tem uma proposta muito interessante e a direção de Marcelo Caetano e a perfeita atuação do elenco foram fundamentais para o resultado obtido.
Em Hit Parade (2021), outro trabalho de Caetano para a produtora Kuarup e Canal Brasil, ele já demonstrara sua habilidade para, a partir de um pequeno orçamento e sem usar grandes “estrelas” do audiovisual brasileiro, produzir um trabalho convincente e instigante em sua construção narrativa. São histórias que nos tocam pelos diálogos bem urdidos e pela forma como as ações se desenvolvem, em que o real e a fantasia se mesclam com fluidez e naturalidade. Rapidamente, após as primeiras sequências de Notícias Populares, já nos sentimos envolvido na trama e íntimos das personagens.
Um outro aspecto a destacar é como o tema deste novo seriado, que aborda uma face bastante controversa do jornalismo, foi trabalhado pela equipe. Segundo Caetano, desde o início eles desejavam que o tom da série fosse similar a experiência de ler o jornal. “Queríamos que ela trouxesse para o espectador todas as emoções e os sentimentos que tanto as imagens quanto os textos do jornal provocavam nos leitores.
Ela trabalha com os excessos, com os extremos e mergulha na linguagem do audiovisual popular, mas mantém também uma certa acidez para causar distanciamento e equilíbrio e mostrar uma visão também crítica sobre o que está sendo narrado”. Caetano ressalta também o prazer que foi a realização do seriado “pelo que ele tem de antropofágico e tropicalista, elementos muito presentes na cultura brasileira”.
Caetano conta ainda que algumas adaptações tiveram de ser feitas, pois na época retratada as questões de raça e gênero, por exemplo, ainda não tinham a relevância dos dias atuais. Ele destaca que “o NP era um jornal meio ambíguo, tinha piadas que hoje não são cabíveis e situações politicamente incorretas, que, portanto, não devem ser celebradas. Mas, ao mesmo tempo, ele tinha muito mais profissionais negros do que outros jornais, teve várias editoras mulheres e, por estar num espaço mais marginal do jornalismo popular, tinha uma abertura maior, tinha coluna sobre candomblé, o Lula tinha coluna, o Maluf tinha coluna, e foi o segundo veículo de comunicação no Brasil a ter uma coluna LGBT”.
Para quem ficou curioso, os episódios de Notícias Populares irão ao ar sempre às sextas, às 22h30, no Canal Brasil, que está comemorando seus 25 anos de existência, e ficarão disponíveis no Globoplay.
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