Por Raimundo de Moraes
Especial para a Revista O Grito!
A arte tem essa coisa de nos proporcionar autoconhecimento e muitas vezes servir como catarse e tábua de salvação. Na elaboração de uma obra ou até na atitude em apreciá-la – objeto de estudo, aliás, do famoso psicólogo russo Semionovitch Vigotski, que escreveu o livro Psicologia da Arte – o ser humano abre caminhos variados, de acordo como se coloca na percepção do que se propõe a fazer/mostrar ou como expectador no sentir/decifrar.
A primeira acepção – indivíduo como criador e ressignificante – é o que acontece com o protagonista do livro Três rapazes e um quarto, do escritor que prefere usar o pseudônimo Biu da Silva. Como ele mesmo assinala na abertura do seu relato, “escrever, em formato de memórias, um resumo da minha vida afetiva naqueles doze meses me parecia o jeito mais fácil de fazer um balanço dos meus destemperos emocionais” e “fazer um relato sobre as relações amorosas com os quatro homens jovens a quem me entreguei iria colocar-me frente a frente com meus próprios fantasmas.” Mas além de escrever suas memórias para tentar entender-se e justificar-se, Biu da Silva revela o enredo que move a narrativa e a sua vida: ele é um tipo de pessoa que adora viver perigosamente.
A pulsão para a morte e o subjugar-se emocionalmente para o pretenso objeto amado, de maneira consciente ou não, já apareceu em vários personagens assumidamente gays, como o Querelle de Brest, de Jean-Genet (que virou filme em 1982, direção de Fassbinder), Daniel (personagem de Sartre no seu romance A Idade da Razão), O Quarto de Giovanni, de James Baldwin (adaptado para o teatro como muito sucesso) e até mesmo o famoso Morte em Veneza, de Thomas Mann (roteirizado igualmente para o cinema, com direção de Luchino Visconti), onde o personagem Gustav von Aschenbach desfia por páginas e páginas um alumbramento melancólico-obsessivo pelo jovem Tadzio.
Depois de relacionamentos homoafetivos com pessoas da mesma faixa etária e classe social, Biu chega àquela idade em “que os pentelhos começam a embranquecer” (uma de suas referências à velhice) como um senhor em busca de prazeres nos braços e nas rolas dos rapazes suburbanos, sempre dispostos a satisfazer tiozinhos e vovôs em troca de presentes e dinheiro. Essa sua busca e troca é muito bem definida num dos recortes das suas memórias envolvendo quatro rapazes: “embora eu fosse um homem maduro, culto e bem posicionado financeiramente, questões de confronto com a velhice e de paixão por homens jovens ainda me perturbavam. A aparente serenidade estampada em meu rosto camuflava uma melancolia permanente em meu espírito. Desde muito jovem padeço de um neo-romantismo crônico latente do qual não consigo me livrar.”
A adrenalina de viver um amor bandido já fascinou muita gente, independente da orientação sexual. Possibilitaram registros bastante interessantes, tanto no cinema como na literatura. Mas enquanto a plateia segue ávida por novas emoções e novas dores, os protagonistas dessas histórias muitas vezes são vítimas de violência e tensão emocional permanente, não raro mergulham na culpa de não terem dado um basta a tantos abusos. E o arrependimento nem sempre consegue frear o inevitável, com finais horríveis, tanto de um lado como de outro.
Biu da Silva, com sua cultura elevada e dinheiro no banco, sabe dos riscos. Ele entra no jogo sabendo de todas as regras. Ele está plenamente consciente do desejo estético-erótico que o faz subir as escadarias de motéis de quinta ou ir até os subúrbios para pegar seus boys, fumarem maconha juntos, foderem bastante e atiçarem a esperança de novos momentos agradáveis entre quatro paredes. Há uma ressaca emocional nisso tudo? Talvez, para alguns. Para os tiozinhos e vovôs que idealizam um michê sinceramente apaixonado, além do abismo social, fica a permanente irritação em relação à complicada vida dupla dos seus amantes. Para os boys, a homossexualidade disfarçada como “meio de descolar uma grana fácil” gera uma ânsia maior de abafar tudo isso, seja ganhando uma moto de presente ou cobrando mais e mais pela “prestação de serviço”.
As diferenças sociais e econômicas que unem e separam os personagens deste roman à clef Três rapazes e um quarto me fazem também lembrar não só O quarto de Giovanni (de Baldwin, já citado acima), como os diários do argentino Tulio Carella, traduzidos por Hermilo Borba Filho, publicados na década de 1960 e republicados em 2011 pela editora Opera Prima. Tulio veio ao Recife a convite de Hermilo, para lecionar na Universidade Federal de Pernambuco e aqui entrou num desvario erótico pelas ruas da cidade, registrando em diários as suas pegações e trepadas, e o transbordar da sua homossexualidade, então latente e ainda não levada às vias de fato. Esse espanto e furor do argentino também são citados por Biu da Silva em sua narrativa, o que concluímos que Carella possa ter inspirado (ou dado coragem) ao autor de Três rapazes e um quarto a tentar exorcizar seus demônios na forma de escrita, ainda que sob pseudônimo.
O neo-romântico Biu, como ele se define, também tem os seus furores carellianos, e caçando novos boys, seja no Pina, em Casa Amarela ou Dois Unidos “fazia-me sentir um Genet dos trópicos, e me mostrava o quanto essas criaturas que vivem à margem traziam alguma dose de risco, mas eram também excitantes”. Ora, justificando seu amor pelo perigo evocando as peripécias de Jean Genet, Biu não só tenta glamourizar a relação do sexo a pagamento como justificar a aberta exploração dos dois lados: o homem maduro buscando juventude e sexo X o jovem suburbano querendo levar vantagem nessas carências sexuais-afetivas. A complexa relação pecuniária entre os parceiros fica ainda mais complicada quando um, além de gozar pagando, quer ser amado. E o outro, abrindo sua intimidade entre quatro paredes, vê um alerta vermelho se acender quando o cliente quer mais que trepadas esporádicas.
Três rapazes e um quarto é uma obra vigorosa e sincera de um autor que expõe o prazer sexual como moeda de troca através do prisma dos desejos. Por isso o sexo, além de carne e libido, sempre foi mercadoria valiosa desde o início dos tempos. E será ainda por outras próximas gerações. Mas nada é perfeito. Uns pagam abrindo a carteira. Outros, dando sua própria vida. Ainda bem que Biu foi mais esperto e resolveu optar em continuar a caçar os papa-frangos de maneira menos visceral. Remando em busca da felicidade, mas olhando se o barco não tem muitos furos, para depois não ter que enfrentar o risco de afundar com ele. Porque prudência e chá de camomila não fazem mal a ninguém. Até Jean Genet entendeu isso no final da vida.
Raimundo de Moraes é publicitário e poeta.