Fotos de Hannah Carvalho para O Grito!
Valdir, o senhor tem vontade de ir a Cuba?
Aonde tiver caminho, eu estou indo.
O relógio apontava as quatro horas da tarde, no terceiro domingo do mês. Na saída de sua casa, no Morro da Conceição, Valdir Marques de Oliveira verificava se tudo estava pronto para seguir com o táxi que o levaria até o Clube Bela Vista, no bairro de Beberibe. Entre veículos estacionados em frente ao Acadêmico, ele esperava, na companhia de suas pastas e bolsas repletas de CDs. Esse mesmo percurso já é realizado há mais de três décadas, pois Valdir Português, assim conhecido por conta do pai ter origem lusitana, é o DJ responsável pela programação de umas das festas mais tradicionais da Zona Norte do Recife. Pelo sorriso que não tira do rosto e a empolgação com que conta a sua história com o Encontro da Família Cubana, fica evidente a antiga paixão pelos ritmos afro-caribenhos e afro-latinoamericanos, que permanece pulsante até hoje.
No carro do taxista Paulo, a rádio sintonizava um programa sobre o cenário esportivo local. Era domingo, dia de jogo. E, como o trajeto para o Bela Vista seria breve, Valdir Português e o motorista colocaram os papos em dia. Conversavam sobre futebol e sobre o que encontram pelo caminho. Mas também aproveitaram para relembrar algumas das corridas feitas em anos de parceria.
Na chegada ao Bela Vista, Valdir espera alguns minutos em frente, até a vinda de alguém da equipe. Enquanto ele aguardava, moradores do Alto do Céu e pessoas que transitavam de moto, de carro ou a pé aproveitaram para cumprimentá-lo e perguntar-lhe se “hoje é dia de cubana”. É sim, todo primeiro e terceiro domingo de cada mês, o Encontro da Família Cubana está marcado na agenda do clube. Já nos preparativos, o DJ se dirige à cabine onde organiza suas pastas numeradas e combina os detalhes com o técnico de som responsável pelo equipamento. Tudo fica pronto antes das 18h, o horário divulgado para o início do evento, tanto nos letreiros luminosos da portaria, quanto na página do Instagram @clubebelavista.
Antônio Barbosa trabalha no Bela Vista desde 1994. Como mora bem perto do clube, grande parte das vezes é ele quem recebe o ilustre DJ nos domingos de festa. Antes da noite chegar e ganhar o brilho que a música cubana lhe dá, ver a pista, antes do horário, ainda vazia e sem a iluminação que toma conta do salão às 18h, é como conhecer um lado íntimo daquele espaço. Mas, em pouco mais de uma hora, as músicas selecionadas pelo discotecário chegam e o público começa entrar pelas catracas de acesso.
Atualmente, o público da Cubana é formado por pessoas de todas as idades. Se antes, relatam frequentadores mais antigos, pessoas idosas predominavam no Encontro da Família Cubana, a presença dos mais jovens, hoje, é também bastante expressiva. “Tem gente que vem sempre, mas muitos ‘guaracheiros’ antigos morreram, outros viraram crente, outros abandonaram porque viajaram e não vieram mais”, pontua Valdir. Reginaldo Pinheiro, 30 anos, faz parte dos que sempre estão presentes no domingo e frequenta o evento há mais de 10 anos. “Tenho um amor muito grande por esse Bela Vista, chamo isso aqui de reino”, conta, entre sorrisos.
Mesmo quem não é habitué, já nas primeiras idas à Cubana, entende o porquê de a festa receber o título de “família”. Realmente, o ambiente familiar compõe toda a vivência, que promove encontros entre amigos e interessados em dançar e compartilhar a seleção musical caribenha e latino-americana apresentada por Valdir Português. Mas sempre há alguém novo, que vai para conhecer a prestigiada festa. As noites de domingo por lá costumam se estender até a meia-noite. Às vezes, porém, acabam chegando a uma hora da manhã – a depender do entusiasmo dos presentes.
Memórias da Cubana
Desde 1989, diversas histórias costuram as memórias em torno do evento. Tem quem conheceu um grande amor por lá; tem os que vão porque querem aproveitar suas noites de domingos realizando passos elaborados no salão; e tem quem vá simplesmente para reencontrar as amizades. Ou, ainda, tudo isso ao mesmo tempo. E, para a surpresa de alguns, o primeiro discotecário de música cubana, no Clube Bela Vista, não foi Valdir. A primeira programação foi apresentada por Jorge Kung Fu, que sempre está presente no local aos domingos. “Era um grupo que gostava muito de música cubana e se reuniu em uma sede aqui perto e pediu ao presidente daqui na época para fazer uma noite cubana. E ficou até hoje. Eu tinha poucos discos, Valdir já tinha muitos e ele que ficou”, relembra Jorge.
Romildo Andrade é um dos fundadores e atual coordenador da Cubana. Desde 2019, quando o antigo coordenador da festa Edinho Jacaré se encantou, Romildo assumiu a coordenação. Ele ainda guarda as memórias do primeiro dia do evento, em 1989: “Lembro que começamos a festa exatamente às 14h. Às 17h, parecia uma coisa de outro mundo. A casa estava lotada e a fila estava aí fora para entrar. Eu tinha convidado onze pessoas, inclusive, meu amigo, já falecido, Edinho Jacaré, para que me ajudasse nesse empreendimento. Quando terminou, Marcos (presidente do clube, na época) me chamou e disse: ‘Romildo, a festa foi um sucesso’”.
Sempre em busca da satisfação dos frequentadores, o coordenador pontua: “aqui, você encontra alemão, português, argentino, espanhol, americano, além dos turistas do Brasil. É muito gratificante isso, um clube de periferia que é respeitado mundialmente. O mundo todo sabe que existe esse Bela Vista, aqui. (…) O bom daqui é o companheirismo. Quando você chega, se não conhece ninguém, quando entra no salão ou se senta em uma mesa, todo mundo ‘lhe conhece’”.
O saudoso Edinho Jacaré é constantemente mencionado quando o tema é o Encontro da Família Cubana, inclusive por Valdir Português, seu amigo e parceiro profissional durante muitos anos. No período que trabalharam juntos, Valdir ficava mais na pesquisa e seleção musical e Edinho fazia a apresentação no microfone, as negociações e a recepção do público. Ambos sempre foram apaixonados pela música cubana e essa amizade nasceu justamente daí, pois eles se conheceram numa feira de troca-troca de vinis, no bairro de Água Fria, Zona Norte do Recife. Valdir já tinha um acervo vasto de discos com ritmos cubanos, e, no início da década de 1990, Edinho teria ido com o então presidente do clube, Marcos, e Romildo até a casa de Valdir, no Morro da Conceição, para convidá-lo a apresentar sua programação no Bela Vista. Desde então, o sucesso de seu trabalho tem sido grande.
A trajetória de Valdir com os clubes recifenses, no entanto, já vinha de antes. Nos anos 1980, ele chegou a trabalhar em alguns estabelecimentos, como, por exemplo, o Bom Sucesso, no Alto José do Pinho, e o Valor Esporte Clube, no Morro da Conceição. No tempo que começou a mexer com a música profissionalmente, ele conta que os repertórios predominantes eram mais voltados à jovem guarda, com artistas como Roberto Carlos, Renato e seus Blue Caps, e aos sambas, como os de Noite Ilustrada. Quando Valdir colocava seus vinis de música cubana em ação, a pista se enchia de gente para dançar, mas também encontrava resistência de algumas pessoas em relação aos ritmos latinos e caribenhos.
“Valdir Português é um ícone nosso. Ele vem com a gente esse tempo todo. É uma coisa que ele faz por amor”, afirma João Batista, atual presidente do Bela Vista. Fundado em 24 de outubro de 1980, o clube já recebeu o troféu Gregório Bezerra, pela divulgação que faz da cultura cubana e coleciona matérias em veículos midiáticos e pesquisas acadêmicas. Uma das reportagens, que marca a lembrança de vários frequentadores, foi uma exibida no programa Fantástico, da TV Globo, que foi apresentada pelo comunicador pernambucano Roger de Renor. A banda Academia da Berlinda fez uma homenagem à dupla Edinho Jacaré e Valdir Português e ao Bela Vista. Em seu primeiro álbum, lançado em 2007, o grupo olindense menciona os dois na letra e canta um percurso super dançante de ida ao clube.
Aos 78 anos, Valdir Português recorda quando escutou pela primeira vez as batidas e sonoridades de uma música cubana. Foi aos 12 anos de idade, uma canção que ecoava de longe e, possivelmente, vinha das caixas de som de algum lugar da Zona Norte da cidade. Dali por diante, ele se encantaria pelo estilo e, anos mais tarde, descobriria que a faixa que havia escutado fazia parte do repertório do grupo cubano La Sonora Matancera, que permanece entre os seus favoritos.
Preconceito
Na dissertação A dança que conduz ao céu: As produções discursivas que dão vida à Noite Cubana, a pesquisadora Maria Lúcia Paulino Mendes aponta que as primeiras músicas cubanas teriam chegado ao Recife, na década de 1950. Nos anos seguintes, as emissoras de rádios divulgavam bastante músicas de gêneros cubanos. Tudo isso acabava fomentando o interesse e a memória afetiva de muita gente pelos ritmos caribenhos e latinos.
Embora a divulgação por parte de mídias e em salões de dança, sobretudo em áreas periferizadas do Recife, acontecesse, também existia preconceito com a música cubana, vivenciado por quem se interessava em curtir e dançar ou mesmo em acessar vinis com músicas desses gêneros. O silenciamento era potencializado pelo fato da música ligada à Cuba e aos países caribenhos ser constantemente associada ao comunismo – que era perseguido por parcelas da sociedade, na ditadura e durante a Guerra Fria.
“Nas periferias recifenses, ouviam-se os sambas, as baladas e os boleros interpretados pelos cantores cafonas brasileiros e latinos. Nas gafieiras, os ritmos cubanos perduravam, apesar da repressão exercida pelo Comando de Caça aos Comunistas (CCC), grupo clandestino criado durante o período da ditadura militar, que invadia os espaços lúdicos, onde se escutavam canções cubanas, a fim de destruir todo o acervo musical ‘subversivo’. Para o órgão de repressão, bastava que a música fosse cantada em espanhol e tivesse um ritmo ‘caliente’ para ser significada como cubana”, escreve Maria Lúcia, em trecho da dissertação, sobre as ações de repressão enfrentadas pela população local.
A perseguição às músicas associadas à dança e à sensualidade, no entanto, aparece em muitas narrativas ao longo da construção das Américas. Mas a música segue sendo um espaço de construção de re-existências e para se pensar outras formas de viver nesse território. Porque a história da América Latina – seja ela, no Nordeste do Brasil, na Zona Norte do Recife, em Medellín, em Santiago de Cuba, ou em Havana, para citar alguns exemplos – também é atravessada pela história da canção romântica.
Por acreditar nas belezas daquelas canções, mesmo percebendo a resistência de alguns, a vontade de Valdir de um dia trabalhar com aquele tipo de música prevaleceria. “Meu pai e minha mãe não tinham dinheiro para comprar um disco na loja mesmo, mas eu gostava muito. Foi quando, aos 12 anos, fui trabalhar numa fábrica de doce japonês. Eu juntei dinheiro e comprei o meu primeiro disco. Fiquei tão feliz da vida, porque tive a sorte de encontrar o vinil em Casa Amarela”, relembra o filho de Dona Maria Amélia e Seu Albano. Seu primeiro vinil, ele conta, foi Yo canto para ti (1958), de Carlos Argentino y La Sonora Matancera, que guarda em formato de CD, em sua pasta de número um.
Dos vinis à internet
Quando começou a trabalhar como DJ, Valdir fazia a programação com vinis. Seu acervo contabilizava mais de 400 LPs, que iam e voltavam com ele para onde fosse se apresentar. Com a chegada dos CDs, converteu todos os seus discos para o formato mais recente, que é como trabalha atualmente. Ele nem pensa em mudar para uma programação computadorizada, mas também não dispensa a internet. Quando vai fazer suas pesquisas sobre novas faixas e artistas, ele utiliza a rede, que o ajuda a manter uma renovação constante do repertório. Também no computador, Valdir faz gravações de discos e faixas encomendadas por seu público.
Seu processo de organização é permeado de títulos que ele coleciona nesses mais de 30 anos. Nas pastas numeradas, cada uma com mais de cem títulos, o DJ organiza os CDs. A divisão se dá por gêneros musicais e por artistas que compõem o repertório do Encontro da Família Cubana. Tem disco de guaracha, chorinho, salsa, bolero, guaguancó, rumba tradicional, pregón, cumbia e vários outros. E, embora as músicas sejam chamadas de “cubanas”, as fronteiras de seu acervo musical ultrapassam a ilha caribenha, são artistas de Porto Rico, Colômbia, Peru, Panamá, Senegal, Catar e do Brasil, para citar alguns.
A chegada da internet foi, a seu ver, uma “maravilha”. Embora a procura por suas seleções musicais gravadas e vendidas em CDs tenha diminuído, ele aponta que o computador agiliza suas pesquisas, que antes eram feitas através de revistas específicas ou quando alguém daqui ia ao Sudeste. “Antes da internet, quando uma pessoa conhecida ia para São Paulo, eu dizia: ‘passa na Rua Augusta, passa na rua tal, que lá tem muita coisa de disco. Vê se achas alguma coisa de música cubana’. Em São Paulo, era mais barato. Quando eu encomendava, traziam e me vendiam. Comprei muitos vinis de lá”, explica.
Cubaneiros
Voltando ao salão da Cubana do Bela Vista, não dançar com a sua seleção musical é quase impossível. A conexão que o DJ estabelece com o público se mostra a cada domingo. Valdir consegue fazer uma mescla de canções que convidam os presentes a irem dançar no salão, mas também pincela faixas que os levam a irem aos bares consumir algo. Porque, além da diversão, dá tempo também de comprar bebidas e petiscos disponíveis no cardápio. “Tem música que lota o salão, mas tem música que escolhe mais os dançarinos. Se eu for botar somente música para lotar o salão, o bar fica esquecido”, comenta. E os preços são bastante acessíveis, a começar pela entrada da festa que custa R$ 10,00. Nos bares, uma água mineral é R$ 3,00, um refrigerante de um litro, R$ 8,00, e uma ice custa R$ 5,00.
Entre os que têm encontro marcado com a Família Cubana, no Clube Bela Vista, Adelson Oliveira, 59 anos, e Marli Marques, 51 anos, moradores de Jardim Paulista, são dos que sempre aparecem para dançar no salão luminoso. Afinal, dançar sempre fez parte da vida dos dois, pois eles se conheceram justamente numa festa, quando Adelson trabalhava como DJ. Ela, bailarina, o tirou para dançar e essa dança permanece até hoje, no primeiro e terceiro domingo de cada mês no Bela Vista. “Começamos a namorar, veio o casamento, filhos, netos”, conta Adelson, que é dono de um grande acervo de músicas cubanas.
Francisco Dionísio, 67 anos, conhecido com Chico da Guaracha, e Rosa, 60 anos, também não perdem uma Cubana. A cada 15 dias, marcam presença no evento, que ambos elogiam bastante pelo repertório e pela estrutura do clube. “Sou ‘cubaneiro’ fiel. Só vou deixar de vir à Cubana, no Bela Vista, quando eu for embora. Para mim, é a melhor música que tem no mundo”, diz Chico, que também coleciona CDs com músicas conhecidas na programação apresentada por Valdir Português.
Ana Carolina e José Carlos têm até vídeos dançando – e arrasando nos passos –, disponibilizados no Youtube. Há 21 anos, eles frequentam o evento. “Dia de sábado também estou aqui, mas a minha preferida é a Cubana. A música é muito gostosa, as pessoas são muito legais. Venho para dançar e ver as amizades”, relata Ana. “Esse aqui é o melhor salão de dança de Pernambuco. O ambiente é maravilhoso. As pessoas são muito charmosas e alegres. Eu mesmo danço com 12, 13 pessoas. Quem vem para cá, não deixa de vir mais, não”, afirma José Carlos.
Como se percebe, são essas e muitas outras histórias que habitam o salão do Clube Bela Vista. O Encontro da Família Cubana conquista, duas vezes por mês, mais e mais admiradores, sempre ao som da programação musical conduzida por Valdir Português. Localizado no Alto do Céu, um pedacinho de Cuba agita as noites de domingo, na Zona Norte da capital pernambucana. Mas, bem melhor do que tentar imaginar, é ir bailar no prestigiado salão, onde o Recife dança coladinho seguindo os ritmos do Caribe e da América Latina.