Nash Laila tinha 18 anos quando submergiu nas águas do rio São Francisco durante as gravações de Deserto Feliz, de Paulo Caldas, que marcou sua estreia no cinema. Com o filme, se inaugurou atriz nas telas e o mergulho no Velho Chico se apresentou como uma espécie de batismo. Antes disso, já atuava no teatro, em trabalhos dirigidos por Jorge Clésio, interpretando peças de Nelson Rodrigues e Ionesco. Àquela altura, ela não imaginava que pudesse construir uma vida pautada pela arte, mas, hoje, com o marco dos seus 20 anos de carreira, não só se deparou com a concretude de uma trajetória construída com base no talento, labor e na crença na coletividade, como celebra o marco e se mantém em expansão.
Para além do seu trabalho como atriz, que continua pulsante, a exemplo da sua parceria com o Grupo Magiluth na peça Édipo REC, Nash agora dá vazão a uma faceta que apesar de há muito tempo estar presente no seu trabalho, pela primeira vez ganha protagonismo: a musical. Com Submersiva, projeto que ela apresenta na Casa de Alzira, no dia 07 de agosto, às 20h, a artista compartilha pela primeira vez com seus conterrâneos um repertório trançado a partir de sua memória afetiva, com canções de compositores de diferentes gerações, como José Miguel Wisnik, Gilberto Gil, Ítalo Soeiro, Fatel e Roberto Mendes. Também estão presentes canções que nasceram a partir da cena teatral, como “Rio Bixiga”, de Marília Piraju e Gui Calzavara, criada para a peça “Mutação de Apoteose”, dirigida por Camila Mota. Na apresentação, que ela reluta em chamar de show, ela está acompanhada dos músicos Arthur Rocha e Vini Silva.
Os dois parceiros de cena se juntam a uma legião com a qual Nash Laila colaborou ao longo dessas duas décadas. E colaborar, para ela, é um processo profundo, que vai além de dividir um trabalho. É uma troca de experiências transformadora. “O que eu construí com todo mundo que chegou até aqui, minha família, meus amigos, meus amores, meus, minhes e minhas parceiras de trabalho é muita coisa. Eu nunca fui sozinha! Eu costumo ouvir que preciso me lançar mais no centro das coisas, “aparecer mais” porque estamos no tempo dessas coisas agora; eu acho bonita e honro a projeção amorosa que se faça sobre minhas potências, mas eu tento construir um imaginário de sucesso que leve em consideração um todo que é complexo e não é sozinho”, reflete Nash.
Se a palavra “carreira” sempre lhe pareceu muito longínqua, hoje ela tem consciência do caminho que trilhou e trilha – e se orgulha dele. Daí o desejo de celebrar, de comemorar suas conquistas e o potencial da criação artística.
“Eu gosto do nome do meu primeiro filme e das imagens que ele lança na minha memória, pois foi com ele que experimentei profissionalmente o que mais amo hoje: ser gente e estar com gente. Atuar é um exercício de viver. Interpretar é ver o mundo de muitas maneiras. Resolvi comemorar pois não é todo dia que uma pessoa vinda do Loteamento Grande Recife, Sucupira, em Jaboatão dos Guararapes, Pernambuco – Brasil, vive há 20 anos de arte no nosso país. Começar e, sobretudo, permanecer. É muito bonito ver a passagem do tempo. Eu gosto do tempo que as coisas precisam para se revelarem. A gente sabe que é uma ralação viver de arte, na instabilidade financeira, ainda mais pra quem não faz escolhas a partir do mercado mesmo tendo vindo de um lugar de vulnerabilidade socioeconômica. E eu não gosto de ficar falando todo tempo sobre isso porque isso não me define. A definição é uma ficção e eu sou feliz de poder acreditar na mutabilidade, é a minha saída e minha saúde”, enfatiza a artista.
Ao longo da sua caminhada, ela já participou de 27 filmes e séries, 24 peças/shows e também já atuou como preparadora de elenco em 10 obras. E todos esses fazeres se complementam, dialogam. Como ela enfatiza, “não existe Nash atriz sem a Nash que observa e se coloca no mundo como uma diretora do seu próprio corpo. Não existe Nash atriz sem a figurinha que canta e pesca na música o sentido das coisas. E estou descobrindo que não existe Nash cantora sem a atriz. Pra mim sempre foi tudo junto.”
Ciente de que a interpretação é também uma forma de autoria, como ouviu em um show de Ítalo Soeiro, ela entende que cada linguagem é uma forma de expressão, de descobrir como contar, e esmiuçá-las é um prazer, nunca uma obrigação. “Eu não domino todas as formas, não me sinto especialista em nada do que eu faço, mas talvez a interpretação seja a minha linguagem, o meu lugar no mundo. A partir dela eu existo e contraceno com as coisas. Para cada filme que fiz, peça de teatro, escrita, direção de qualquer tipo de espetáculo, preparação de elenco, aula, música, palpitagem, eu entreguei tudo de mim, toda sabedoria que alcancei através dos encontros e toda a vontade de descobrir.”
“Eu não domino todas as formas, não me sinto especialista em nada do que eu faço, mas talvez a interpretação seja a minha linguagem, o meu lugar no mundo. A partir dela eu existo e contraceno com as coisas.
Nash Laila
Música, presente
“Submersiva aconteceu depois de perceber que, desde que saí de São Paulo para ir estudar canto em Salvador, eu tinha parado de cantar diariamente. Como falei, o repertório foi se construindo nessa andança. Eu fui obcecada por cada uma dessas canções que estão no repertório. Cada uma delas me salvou em algum momento. Fui curada por elas. Então me juntei com Arthur Rocha, meu parceiro desde que cheguei em Recife, que, generosamente, topou tocar comigo essas canções.
Eu tenho muita crise com a palavra show, geralmente, porque parece que pra conseguir fazer um tenho que ter um tamanho de espetáculo que não me sinto confortável. Mas estava com muita vontade de cantar em Recife. Eu fiz show em São Paulo, algumas vezes, no Teatro Oficina, que considero minha casa, ou em teatros, com amigos artistas parceiros, mas nunca tinha feito aqui. Quando eu entrei na Casa de Alzira pela primeira vez eu entendi: é desse aconchego que eu preciso. Flavia Gomes tem sido muito importante nessa construção, assim como Ana Nogueira, minha amiga de longa data, artista da cena e da comunicação, Babi Jácome, figurinista e Vini Silva, instrumentista dos sopros. Com eles, ficou fácil. Parece que eu estava buscando uma casa pra cantar com o conforto da sala da minha casa ou com a concentração de um teatro.
Eu sinto que preciso de imersão e de troca pra fazer qualquer coisa que seja ao vivo. Eu sempre reúno pessoas da música na minha casa (onde quer que eu esteja) pra cantar e tocar junto. Tenho esse talento para reunir gente. Então me deu um siricutico e uma necessidade de apresentar umas canções pras pessoas, cantar pra juntar gente pra ouvir, não a mim, mas a música, essa deusa poderosa que faz a gente mudar a si mesmo. Tentar revelar ela. Eu me sinto um instrumento dela e como sou das artes da presença, proporcionar ouvir canções coletivamente é uma necessidade cênica”, conta.

Nash Laila recorda que a sua relação com a música, que ela considera uma arte democrática, que chega a todos os lugares sem pedir licença, sempre foi de muita intimidade e atribui à mãe a aprendizagem de ouvir música e, no percurso, outras pessoas foram ajudando a compor as partituras afetivas.
“Era comum acordar num domingo e encontrar minha mãe sentada em frente à radiola com uma pilha de discos ou CDs espalhados no chão, ouvindo um a um, ou pescando canções da música popular brasileira. Ela passava horas nessa. Com ela ainda aprendi também a cantar porque ela sempre cantou. Um dia ela deu um violão de presente pra minha irmã mais velha, mas quem ficava brincando com ele era eu, ainda adolescente. Quem me ensinou os primeiros acordes foi um pastor da igreja que a gente frequentava, ele também era formado em música e filosofia, foi um grande amigo. Ele me fez perceber, ainda naquela época, de maneira consciente, a musicalidade e a matemática musical. Eu fiquei apaixonada pelo Fá menor (risos). E daí passei a gostar de músicas com tonalidades mais “melancólicas”, assim diziam. Eu gastava muito tempo decorando arranjos de músicas que eu ouvia, as linhas de instrumento, separando e juntando tudo. Mas foi tudo de uma maneira muito íntima mesmo”, lembra.
Nash considera que a música foi a primeira linguagem artística que a tomou e que percebe que ela é o ponto de partida dos seus projetos – e, talvez, também o fim. Por isso, sua chegada ao Teatro Oficina foi tão natural. Ela se juntou ao grupo criado por José Celso Martinez Corrêa (1937-2023) em 2011, pouco depois de filmar Tatuagem, de Hilton Lacerda, filme inspirado na experiência do grupo Vivencial, que, na década de 1970, subverteu a ordem do teatro pernambucano, propondo uma criação que misturava teatro, música, artes visuais e as múltiplas vivências e corporeidades de seus participantes. O Oficina, uma experiência que também aposta em outras lógicas de construção, que acredita no caráter transformador e libertador do teatro e da arte, tem sido um solo criativo para Nash desde então, onde, entre outras coisas, conseguiu retomar sua relação com a música, em diálogo com a atuação.
“No Teatro Oficina se cultiva a música e a canção como ligação, como texto, como dispositivo de conexão, onde se criou e se cultiva as óperas de carnaval, o teatro musical brasileiro, a tragicomediorgia. Eu acho que a música tem esse poder de conectar corpos desplugados. Obviamente o teatro e o cinema me capturaram profissionalmente e eu parei de estudar. Só depois quando fui pro Teat(r)o Oficina é que voltei a cantar diariamente e foi lá que fui chamada de cantora pela primeira vez pelo Zé (Celso) que, generosamente e astutamente, nos dava ‘papeis’ pra gente incorporar na vida. O ‘Submersiva’ foi sendo construído intimamente nesses últimos dois anos de mergulho após a ethernidade do Zé, quando fui pra Bahia e depois voltei aqui pra Recife. Digamos que é um repertório de subtextos desse nado de uma casa a outra. Nesse percurso eu vi muita coisa linda e elas estarão presentes no show”, compartilha a artista.

Os retornos mais frequentes ao Recife, onde tem criado não só com o Magiluth, mas com outros artistas, têm sido fomentos criativos para Nash. Segundo ela, produzir na cidade é “um misto de sossego e desafio, por falar a mesma língua, e a partir dela se propor a descobrir novas.” E, poder fazer essas trilhas profissionais, repensar lógicas profissionais, não ceder às pressões de um mercado que muitas vezes aniquila a criatividade, é ainda mais recompensador. Ainda mais quando ela percebe que a sua trajetória artística e as contribuições que deu, dá, recebeu e recebe, nesses processos internos e colaborativos, ajudam, também, a abrir novas possibilidades para os anos que virão.
“Coloco minha energia para os processos, para a criação. E também sofro as consequências disso. Em contrapartida, Pernambuco é a matéria prima das minhas criações. É a partir daqui que eu vislumbro as coisas. É o fim e o início, no fim das contas. Eu tenho pensado bastante sobre a transitoriedade da minha vida. Aprendi a me aproveitar dela. Fiz um trabalho em cima do livro de Adelaide Ivánova em SP, o ‘ASMA’, com ela e Mirella Façanha, que fala exatamente sobre esse ir e vir e essas transfigurações que a gente precisa fazer para nos manter vivas. E quando estamos em andança o centro e o território vira o nosso próprio corpo (…) Então, é preciso dizer que esses 20 anos de dedicação ao cinema, ao teatro e às pessoas se fez dessa maneira porque eu acredito na força coletiva, isso me constitui, é como um membro, uma perna ou um braço no meu corpo, e não há nada de místico nisso, nem sobrenatural, é concreto como meu sangue e muitíssimo trabalhoso. Espero seguir por mais muitos anos, que o Brasil permita, que a política pública permita, que as pessoas não percam a fé na presença”, reflete.
Serviço:
Nash Laila apresenta “Submersiva”, com Arthur Rocha e Vini Silva
Data e horário: 07 de agosto (quinta-feira), às 20h
Local: Casa de Alzira (Sala Inaldete Pinheiro, no Muafro – Rua Mariz e Barros, 328, Sala 31, Bairro do Recife
Ingressos por R$ 30, à venda no Sympla
Informações: @casadealzira
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