The Smiths no Top Of The Pops – BBC (Foto: Jeff Simpson/ Divulgação)
O DIA EM QUE A TERRA PAROU
Durante dias as músicas ressoavam na minha caixa craniana e me despertavam um misto de êxtase e melancolia, dor e glória. Era Morrissey
Por Alexandre Figueirôa
Em 1984 São Paulo queria ser Londres, Tóquio ou Nova York (não mudou muito nos dias que seguem). E eu, pobre migrante, cansado das ladeiras de Olinda sonhava em me tornar cidadão do mundo. Perfeita combinação de deslocamentos imaginários. Campos suturados, recriando topos virtuais quando a web era ainda um projeto militar.
Naqueles idos, Manchester já despontava como Meca pop a provocar frenesi nas cabecinhas desvairadas. Para quem cresceu com os quatro garotos de Liverpool, a mudança geográfica era simples (imagina, só alguns poucos quilômetros separando as duas cidades) e, portanto, sem maiores traumas. Apenas outros tempos, outros sons, outras imagens.
E foi nessa rearrumação da escravidão ideológica neocolonial consentida e desejada que uma matéria anunciava, nas páginas do único caderno de cultura digno de credibilidade da pós-modernidade em circulação nas terras brasileiras daqueles dias (a Ilustrada da Folha de S.Paulo), uma dessas novidades inesperadas que nos assaltavam o coração de tempos em tempos.
Havia no então bairro boêmio do Bixiga – ponto de encontro de todas as tribos paulistanas, pós-hippies, punks, suburbanos desencontrados, góticos, roqueiros, alternativos sem dinheiro – um local curioso que se chamava Carbono 14. Era um edifício esquisito, estreito, e que depois de alguns lances de escadas chegava-se a uma sala onde havia um telão para projeções em vídeo.
Pois bem, alguém recém chegado da Inglaterra (UAU!) (seria o Antônio Bivar?) trouxera na bagagem uma fita com uma coletânea de videoclipes de uma nova banda que estava sendo anunciada como a melhor coisa já surgida na face da Terra nos últimos meses: The Smiths. Se a banda era tudo, o vocalista, era um novo ícone da cultura pop, dizia a tal matéria.
The Smiths (Foto: Tom Sheeman/ Divulgação)
Ávido por vivenciar essa experiência quase lisérgica, eu não me fiz de rogado. Meia-noite, uma da manhã, de um sábado ou de uma sexta (os horários dos eventos no Carbono 14 eram sempre cheio de mistérios) não lembro bem, estava eu lá, comme il faut. Chamei uma amiga que não entendia bulhufas de música pop para me acompanhar, pois como conhecia pouquíssimas pessoas na Pauliceia, não queria ficar deslocado em meio aos moderninhos todos vestindo seus modelitos quase invariavelmente pretos, os cabelos com cortes translumbrantes, uma fauna e tanto.
O clima no lugar era tudo a que um aspirante a pós-moderno cosmopolita podia desejar. Ambiente esfumaçado, sombrio, os hypes musicais da época, Siouxie, Joy Division, Sex Pistols rolando. De repente o telão se ilumina. A projeção típica de reprodução de imagens em VHS pirateadas fez emergir das sombras as criaturas pelas quais todos que ali estavam tinham pagos alguns tostões para ter o direito de, em primeiríssima mão, vê-las dar o ar da sua graça por estas bandas.
O choque foi inevitável. Apesar da precariedade da reprodução, quando Morrissey balançou seu corpo e entoou o primeiro hit da banda, tendo num dos bolsos traseiros da velha calça jeans desbotada um ramalhete de flores, foi como se um raio vindo do Olimpo atingisse em cheio os nossos olhos. The Boy With A Thorn In His Side …. . Os clipes se sucediam e dali a pouco estávamos todos hipnotizados, embalados pela voz de Morrissey e os acordes dos Smiths. Ali, descobrimos, que uma nova era estava surgindo. Adeus às roupas negras, a melancolia era bela e reluzente, uma nova atitude estremecia até mesmo as couraças de nossas sexualidades mal desenhadas. Era como se a primavera e o outono fossem uma única estação.
Não lembro quanto tempo durou a exibição. Não importava. Quando as luzes se acenderam e parti, sem perder a consciência da submissão cultural ao mundo civilizado a que estava submetido, me senti privilegiado de ter participado daquele estranho culto. Minha amiga nada entendeu do que se passava comigo. Durante dias as músicas que ouvira ressoavam na minha caixa craniana e me despertavam um misto de êxtase e melancolia, dor e glória. E, fatalmente, eram o rosto e a voz de Morrissey as mensageiras de tantas emoções e divagações que atingiam, por vezes, as raias de um prazer divino e sexual, e faziam vibrar todo meu corpo.
Os meses se passaram. The Smiths estourou no mundo inteiro. Nas festas, nas casas noturnas, nos programas de clipe da TV lá estava a figura de Morrissey pairando sobre mim como um anjo do apocalipse. Os anos se passaram, a banda acabou, Morrissey tornou-se um senhor. Eu envelheci, mas em algum recanto da minha alma, os acordes e os vestígios imagéticos daquele dia glorioso ainda me trazem lágrimas.