“Os xingamentos e os achincalhes aconteciam principalmente na escola, o que me fez odiar esse espaço”, relata Megg Rayara Gomes de Oliveira, primeira travesti negra doutora em Educação no Brasil, título obtido na Universidade Federal do Paraná. Ela promete lutar por inserção de transexuais na educação, sendo a segunda no país a defender uma tese de doutorado, em 2017. A primeira é Luma Andrade, doutora pela Universidade Federal do Ceará, em 2012, que não é negra. Dados apontam que mais de 80% das travestis e mulheres transexuais assassinadas no Brasil são negras.
Celebrado mundialmente em junho, o mês do orgulho LGBTQIA+ é marcado por eventos, palestras e festas do Orgulho LGBT, para conscientizar e reforçar a importância do respeito e da promoção de equidade social e profissional de pessoas da comunidade e O Grito! realiza uma série de entrevistas especiais sobre o tema.
Um potente movimento acadêmico desenvolvido por mulheres, pretas e LGBTQIA+, tem procurado quebrar barreiras sociais e mostrar que ninguém melhor que elas próprias para pensar e falar academicamente sobre elas. Fruto desse empoderamento, é lançada a coleção Saberes Trans, da Editora Devires, que reúne obras de mulheres trans, pretas e acadêmicas: Sofia Favero e Thiffany Odara, além da própria Megg Rayara.
Em Pedagogia da Desobediência: Travestilizando a Educação, a pesquisadora, pedagoga e Iyálorixá Thiffany Odara conta sobre a produção de saberes travestis na cidade de Salvador. Ela apresenta histórias do movimento trans com os diálogos teóricos do feminismo negro e propõe travestilizar a educação como forma de construção de espaços de conhecimento que sejam para todas as pessoas.
Não importa nossa formação, nossa classe social: quando colocamos o pé na rua somos apenas trans e nos transformamos em alvo.
Escrito por Sofia Favero, Crianças Trans, Infâncias Possíveis narra experiências trans na infância. “Esse lugar sem nome, é abrir o possível na própria carne”, diz na orelha da obra. A autora realizou uma densa pesquisa sobre a transexualidade na infância e suas multiplicidades narrativas em documentos médicos, em regulações institucionais de direitos transnacionais e em debates científicos, encontra um lugar ainda mais múltiplo: a narrativa de sua própria infância.
Graduada em Desenho e com especialização em História da Arte pela Escola de Música e Belas Artes do Paraná, Megg Rayara tem uma trajetória de fortalecimento do combate à homofobia dentro do meio acadêmico. Ainda criança, aos seis anos, percebeu que era mulher, ainda que o mundo quisesse lhe dizer o contrário. No entanto, somente em 2016 conseguiu retificar seu nome de gênero e defender o doutorado da maneira que queria.
Antes disso, Megg tentou fazer mestrado quatro vezes, sem nunca reprovar nas provas escritas. Porém, ela sempre era barrada nas entrevistas de bancas examinadoras. Atualmente é professora adjunta da UFPR e uma das coordenadoras do Núcleo de Estudos Afro-Brasileiros (NEAB) da instituição, pesquisando relações raciais, arte africana, arte afro-brasileira, de gênero e diversidade sexual.
Megg ousa até questionar em O diabo em forma de gente – (r)esistência de gays afeminados, viados e bichas pretas na educação, sua tese de doutorado que virou livro, uma parte da teoria de Michel Foucault. Megg o apelida de “bicha branca”. O filósofo francês era homossexual. O celebrado autor de quatro volumes sobre a história da sexualidade discute sobre dispositivos de poder que existem na sociedade para controlar os indivíduos e mantê-los presos aos padrões sociais, como a homofobia, que persegue homossexuais. Megg é exemplo da sua própria teoria: as repressões que ela sofreu só contribuíram para fortalecer sua identidade e não a impediram de conquistar, inclusive, um diploma de doutorado.
Em sua obra, a autora reúne depoimentos de quatro professores que sofreram por não se encaixarem nos padrões da heteronormatividade. Ela própria relata sua história nas páginas do livro, que se tornou em espécie de autobiografia.
Confira o bate-papo que batemos com Megg:
De onde você se inspirou para escrever os livros “O Diabo em Forma de Gente: (r)existências de gays afeminados, viados e bichas pretas na educação” e “em ao centro, nem à margem! Corpos que escapam às normas de raça e de gênero”?
O Diabo em Forma de Gente é minha tese de doutorado. Ainda quando criança no interior do Paraná, eu passei por um processo de demonização, por ser negra e afeminada. Os xingamentos e os achincalhes aconteciam principalmente na escola, o que me fez odiar esse espaço. A medida que crescia, entendia que precisa de uma formação escolar para ocupar, minimamente um lugar no mundo.
Já morando em Curitiba, atuando no movimento negro e depois no movimento LGBT, entendi que gênero e raça não eram discutidos de forma interseccional. Minhas experiências pessoais, minha militância e minha formação profissional como professora influenciaram minha pesquisa e escrita da tese também os artigos que compõem o livro Nem ao centro, nem à margem.
Não consigo estabelecer um distanciamento entre experiência de vida, militância e produção acadêmica. As três coisas são simultâneas.
Apesar das conquistas, ainda há muito a avançar em termos dos direitos das pessoas trans. O que você considera que são as principais pautas em que ainda é preciso melhorar?
O Brasil continua nos matando. Não importa nossa formação, nossa classe social: quando colocamos o pé na rua somos apenas trans e nos transformamos em alvo.
As políticas públicas que foram construídas, como processo transexualizador no SUS, direito a retificação de nome e gênero sem laudo psicólogico e psiquiátrico, criminalização da transfobia, por exemplo, são conquistas importantes, mas precisam ser efetivadas. A fiscalização dessas políticas é feita apenas pelo movimento social e isso acontece apenas em regiões onde o movimento social atua, ainda assim de forma pontual.
Precisamos de políticas afirmativas em várias frentes, principalmente na geração de emprego e renda. A sociedade brasileira é muito hipócrita e isso também é um problema. O mesmo empresário que recusa a contratação de travestis e mulheres trans, contribui para sustentar as redes de prostituição e pornografia trans. O Estado precisa assumir seu papel no combate à transfobia estrutural e institucional.
Qual a sua trajetória no ativismo LGBTQIA+
Eu atuo no movimento Trans e no movimento negro e procuro levar as pautas dos dois movimentos para o interior da Universidade. Hoje minha participação é muito mais como palestrante. Minha atuação como pesquisadora e como professora também é uma forma de militância.