AS VADIAS BRASILEIRAS SÃO OBRA DO (M)ACHISMO
A organizadora da Marcha das Vadias no Brasil fala da organização e de como por aqui, a discriminação sempre foi combustível para fazer uma passeata como essa
Por Juliana Dias
Da Revista O Grito!, em São Paulo
A foto é do Flickr de Samuel Kassapian Jr.
A Marcha das Vadias, versão brasileira da SlutWalk que ocorreu no Canadá e já passou pela Argentina, Estados Unidos, Inglaterra, Holanda e Nova Zelândia, chegou ao Brasil e prometeu levar mais de seis mil pessoas à Avenida Paulista para protestar contra o machismo e a culpa atribuída às mulheres em casos de estupro – mas teve 300 presentes na Marcha, segundo a Polícia Militar
A primeira Slutwalk aconteceu no início do ano de 2011 em Toronto, no Canadá. Durante uma palestra sobre segurança em uma universidade, um policial disse que as estudantes deveriam evitar se vestir como vadias (sluts) para não serem escolhidas para o estupro. Depois, veio a resposta: as mulheres canadenses colocaram a banda (e o corpo) na rua para dizer que sim, podem se vestir como quiser, e a culpa dos abusos sexuais e estupros é do agressor, não da roupa que elas colocam.
No Brasil, o evento chegou em junho e Solange De-Ré, que criou a marcha com o noivo e artista musical Edu Udek (42) e a amiga e publicitária Madô Lopez (28). Informados da SlutWalk canadense, eles resolveram implantar essa ideia no Brasil. “Esperávamos de 50 a 100 pessoas. Quando vimos, deram duas mil. Daí veio a necessidade de maior organização: cuidamos do policiamento e da cobertura da mídia, para deixar o evento o mais bem divulgado e pacífico possível”, conta Solange. Tudo foi divulgado no Facebook e, um dia antes de acontecer, o evento contava com mais de seis mil confirmados. No sábado, dia 04, em que aconteceu a SlutWalk brasileira, foram 300 pessoas, segundo da Polícia. Junto ao Brasil Chicago e Los Angeles (EUA), Edmonton (Canadá), Estocolmo (Suécia), Amsterdã (Holanda) e Edimburgo (Escócia) também realizaram a caminhada. A repercussão no exterior, no entanto, foi muito maior.
Na véspera da marcha brasileira, em entrevista à Revista O Grito!, Solange De-Ré contou sobre suas ideias e, claro, sobre a Marcha das Vadias.
“Vadia” não é uma palavra muito forte?
É. Mas queríamos traduzir a SlutWalk para o português. Quisemos ir a fundo no sentido e utilizar a palavra que mais tinha a ver com o nosso idioma e representava o que muitos brasileiros acham das mulheres que se vestem de forma mais provocante: umas vagabundas acéfalas.
Quais as principais ideias que a Marcha defende?
Defende que a mulher, independente de como se veste, merece respeito. Devemos acabar com essa cultura da violência à mulher, da culpa pelo estupro. E também a opressão. As pessoas ficam inibindo as outras por causa do preconceito. Se, por exemplo, uma guria usa um vestido mais colado e a outra já sente ciúme do namorado e chama de vadia. Temos de repensar isso. Reconsiderar os nossos julgamentos, até para mudar nossa postura. Só temos de respeitar, aí, o limite do atentado ao pudor [risos].
Vídeo: Mulheres em marcha repudiam o CQC (na TV Folha)
Como você definiria a Marcha das Vadias?
Não é reality show nem carnaval. Organizamos a marcha para debater o machismo que atinge a sociedade brasileira e algo por qual toda mulher brasileira já passou: uma piada ou o preconceito por mostrar mais do seu corpo. Não é como no Canadá, em que o policial foi lá e disse o conceito de mulher estuprável. Aqui esses conceitos acontecem todo dia, dentro da nossa cabeça. Nós [as organizadoras] já discutíamos essas questões, pois sofremos com discriminação com as nossas roupas desde sempre. A Marcha foi uma oportunidade de colocar no mundo o que conversamos entre nós. Quando uma mulher usa uma roupa mais colada, vêm logo os comentários, e isso acontece muito, todo dia. Até parece que é a roupa que faz o estupro. Não é assim. O estupro vem da psicologia do estuprador. Independente da roupa, ele quer ver a mulher humilhada, sentindo dor e horror.
Você acha que a Marcha apenas pegou carona na onda de outras manifestações?
Acredito que ela veio pela vontade de levantar poeira, pela necessidade de ir à rua. Tanto é que ela não está ligada a nenhum outro movimento que está rolando [como a Marcha da Legalização da Maconha ou Liberdade de Expressão]. Nossas origens [os três são do Sul] também contam muito. Vemos muitos exemplos legais na história da nossa região. Acho que temos essa garra de lutar pelo que não concordamos e pelo que está errado. Minha estadia recente no Chile também influenciou muito a criar o movimento. Lá, eles vão para a rua protestar, nem que sejam 20 pessoas. Não é à toa que tem a cidade limpa e bem menos corrupção – e eles se orgulham disso. Aqui, a Marcha das Vadias veio para falar de como os homens enxergam as mulheres, e de como as mulheres enxergam as próprias mulheres: com machismo e muito preconceito.
Existe algum caso que você destaque aqui no Brasil ou um exemplo mais pessoal de machismo?
O caso Geisy é o mais marcante no Brasil. Até perguntaram se essa marcha não tem a ver com ela, mas não. Até seria legal se ela participasse, pois a Geisy passou exatamente por isso. Fizeram todo aquele movimento por um vestido curto na faculdade. De caso mais pessoal, vemos exemplos todos os dias. Eu destacaria uma vez em que um cara deu uma investida pesada em mim. Sou escritora, blogueira, atriz e já posei nua. Justamente por eu ser cabeça aberta e ter mostrado o corpo ele forçou a barra, dizendo que só porque eu me expus eu deveria dar para ele. Também posso citar minha própria família: o tratamento da mulher é diferente. Fui criada no Paraguai, onde nasci, tenho pais de cabeça aberta que criaram minhas duas irmãs e os meus três irmãos. E imagina, até nela tinham diferenças de tratamento. Os meninos tinham mais liberdade que as meninas. Mamãe dizia que a mulher devia se conter mais e parecer qualificada, mesmo que os homens que arrumássemos não fossem tão “qualificados” assim.
O que seria ser qualificada? O oposto da vadia?
Ser virgem, ser comportada. É aquela regra que costumamos brincar, a regra de três. Você tem que dizer que só ficou com três caras na vida: o primeiro foi um namorado de muitos anos, com quem foi quase casada; o segundo foi um cafajeste e o terceiro foi aquele para quem você está conhecendo agora.
Vocês receberam muito apoio? E críticas?
Até agora, temos recebido mais críticas positivas que negativas. Mas um protesto assim vai ser mal recebido entre os liberais e mais ainda por conservadores. Para mim, feio mesmo é a corrupção, as coisas do nosso país que não funcionam. Não se mostrar e protestar nas ruas.
Uma dúvida que muitos colocaram no Facebook é “com que roupa eu vou?”. Alguém chegou a dizer que vai nu ou algo do tipo?
Teve gente que disse que vai na Marcha de roupão, para abrir lá. Assim é demais. O Brasil gosta de levar as coisas com humor, o que é bom, mas temos a tendência de tudo virar carnaval. E essa marcha não é um cabaré ou uma piada do Casseta & Planeta. É uma manifestação política que tem significado. Vivemos em uma Hollywood Tupiniquim, onde aparecer e tornar-se artista é melhor do que fazer alguma coisa que traga mudanças. Salvo algumas exceções, a maioria das pessoas prefere aparecer a agir de forma política. Eu, por exemplo, ia de camiseta, pensei em várias fantasias… mas eu decidir ir mesmo é de Solange. Roupa curta, decote, coladinha.