Especial CCXP 2023
Era 1979 e a prática do futebol por mulheres voltava a ser legalizada no Brasil, encerrando quatro décadas de proibição e clandestinidade. Contudo, a regulamentação só viria a acontecer quatro anos mais tarde, em 1983. Jornalista de formação, a pesquisadora Lu Castro estava em busca de informações sobre esse período, quando inesperadamente encontrou registros sobre um campeonato realizado entre as trabalhadoras das movimentadas boates que funcionavam na região da Boca do Luxo, na área central de São Paulo.
É este o ponto de partida da HQ E a Boca do Luxo Entra Em Campo, lançada em parceria com a quadrinista Lalo Sousa. Em formato de mangá, a obra ficcionaliza a pesquisa iniciada por Castro e, juntas, jornalista e ilustradora imaginam as relações de amizade — e a também acirrada competitividade — que certamente se estabeleceram entre essas mulheres. O título é um dos lançamentos que desembarcam na próxima quinta-feira, 30 de novembro, na Comic Con Experience, a CCXP, na capital paulista.
Lalo, que não se considera uma fã de futebol nos moldes convencionais, pois não torce para nenhum time e nunca acompanhou os torneios masculinos, se apaixonou pela modalidade feminina durante as Olimpíadas, em 2016, e desde então vinha nutrindo a ideia de fazer um quadrinho sobre o esporte. “Algo incrível cresceu no meu peito enquanto torcia, e acho que finalmente entendi o que as pessoas sentem assistindo futebol”, confessa à Revista O Grito!.
De lá para cá, ela produziu algumas ilustrações da seleção brasileira e, em 2020, chegou a iniciar um projeto online de quadrinho esportivo ao lado de outras autoras. Foi o chamado C.E. SAFA, através do qual publicou tirinhas inspiradas em um pequeno time de interior. “Mas assim que comecei a chegar na parte técnica de jogadas e escalações percebi que eu precisaria estudar MUITO para fazer uma história crível… Daí percebi que nunca conseguiria fazer esse quadrinho sozinha”, admite.
Logo, ela começou a procurar amigas que jogavam e assistiam futebol e estavam, de fato, envolvidas com o esporte. A intenção era encontrar alguém que pesquisasse o campo e aceitasse embarcar na “loucura”, como ela mesma diz, de escrever um quadrinho. Foi aí que Lu Castro entrou na jogada e trouxe a pesquisa sobre o torneio da Boca do Luxo. A descoberta foi feita por ela em edições do Jornal Diário da Noite, que trazia informações sobre escalação, artilharia, classificação e próximos embates.
“Conversamos e deu muito match! Era a oportunidade de escrever para HQ, algo que eu desejava havia muito tempo”, revela a jornalista, que, no entanto, não encontrou registros sobre o final do campeonato. Assim, o projeto também representou a oportunidade de preencher as lacunas do trabalho por meio do exercício criativo da escrita. “Há uma espécie de liberdade na ficção que só agora, aos 52 anos, consigo compreender com mais profundidade. Carregar o embasamento da pesquisa futebolística e da vivência também sublinha a produção da escrita para ficção”, completa.
Na trama, roteirizada por ambas as autoras com desenhos de Lalo, a protagonista Isabel é uma mulher que trabalha na Boate My Love e vê no esporte uma oportunidade de deixar a vida noturna. Ao lado dela está a novata Dolores das Almas, que se revela uma jogadora talentosa. “Tanto Isabel quanto Dolores não gostam de onde estão e Isabel é a mola propulsora desse feito.” Rivais do time da Boate Le Masque, as personagens vivem no campo momentos de muita emoção e adrenalina, mas os obstáculos enfrentados vão além do jogo e da bola.
“A história destacada na pesquisa, por si só, já é muito potente, afinal, nos meses que se seguiram ao fim da proibição, restava muito forte a pecha da marginalização da mulher que jogava futebol. Para essas mulheres, trabalhadoras do sexo, há um plus nesse julgamento da sociedade. Mas, dentro de um campo de futebol, sobretudo na várzea paulistana, isso se torna irrelevante – ou deveria se tornar, e foi esse o exercício proposto para reflexão: mulheres, trabalhadoras do sexo, ocuparam campos de futebol varzeano ao fim da proibição. E isso é um elemento importante demais dentro do contexto histórico da mulher no futebol”, aponta Castro.
“E esse ‘campeonato’ surge não como uma militância dos donos de boate em prol do futebol feminino, mas sim uma ideia de negócios onde o produto era novamente o corpo dessas mulheres”, pondera Lalo. Essa reflexão guiou o processo de criação do mangá, que praticamente ignora os olhares masculinos para imaginar as possíveis relações que floresciam entre essas mulheres em um cenário tão adverso. “Acho que por isso a segunda página da HQ tem uma flor nascendo no concreto. No final, o quadrinho é sobre usar o espaço que te deram e ir estourando a pedra na medida que se cresce e ganha força.”
A escolha pelo gênero narrativo japonês fortaleceu essa proposta porque permitiu explorar a rivalidade feminina em uma abordagem fora do convencional, transferindo a disputa pelo amor romântico para a competição em campo. “Óbvio que acabamos tratando de disputas afetivas (não por um homem, por outra mulher, no caso), mas a batalha não se dava no campo da sedução e feminilidade e sim na correria e força. E tratar dessa amizade entre mulheres que podem se potencializar também, coisa rara em histórias que envolvem performance física num geral.”
“Acho que, de cara, a intenção foi denotar uma potência física e dar um zoom na plasticidade do jogo. Os movimentos do futebol, como em qualquer esporte, carregam essa beleza plástica. Quando a Lalo me disse que tinha em mente desenhar em mangá de esporte, meu desejo de valorizar e expandir essa linha do conceito sobre o futebol jogado por mulheres, só se ampliou e me animou mais ainda”, destaca Lu Castro.
O basquete de Slam Dunk, o vôlei de Haikyu, o futebol de Offside e até do clássico Capitão Tsubasa são algumas da referências incorporadas no trabalho, revela Lalo Sousa. “Eu gosto da breguice da coisa toda, das frases motivacionais, das linhas de ação, das jogadas exageradas e impossíveis… Para mim, mangás de esporte são no fundo grandes livros de autoajuda com uma mensagem ‘tenha amigos, acredite em si mesmo e neles, mesmo quando tudo parecer impossível’.”
Com 228 páginas em preto e branco, E a Boca do Luxo Entra Em Campo encontra-se disponível para compra no site da quadrinista. Por lá, também é possível ler o primeiro capítulo gratuitamente. O lançamento da HQ aconteceu em agosto deste ano, no mesmo dia da final da Copa Feminina, vencida pela seleção espanhola.
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