Em comemoração ao Dia do Cinema Brasileiro, celebrado em 19 de junho, o presidente Lula sancionou uma lei que regulamenta a exibição de filmes nacionais no cinema. Dessa forma, passa a valer uma espécie de cota, estipulando que um número determinado de salas sejam reservadas para a exibição de estreias de longas nacionais. É uma maneira de incentivar a produção e o consumo do cinema nacional.
O acesso, a inclusão e a importância do cinema já foram assunto de diversos debates ao longo de anos no Brasil. A Lei nº 14.814/2024, mais conhecida como Lei de Cotas de Telas, é uma legislação sancionada pelo presidente da República em janeiro de 2024. Ela traz de volta, desta vez como Lei, a Medida Provisória nº 2.228-1, de 6 de setembro de 2001, que determinava, sob um período de 20 anos, uma série de medidas incentivadoras ao cinema nacional, entre elas a criação da Agência Nacional do Cinema (Ancine), o Conselho Superior do Cinema e a implementação de uma cota mínima anual de exibição de filmes nacionais nas salas de cinema.
A ideia de ter uma cota para filmes nacionais em exibição no cinema não é nova: foi implementada pela primeira vez em 1932, pelo então presidente Getúlio Vargas. É, desde então, considerada essencial para a sobrevivência do audiovisual do nosso país. No entanto, a medida pede revisões anuais em sua regulamentação, promovendo verificações do seu cumprimento por partes dos cinemas. Isso não acontecia desde 2019.
Para discutir o tema, convidamos o jornalista pernambucano, professor e crítico de cinema Luiz Joaquim. Ele é responsável por influenciar a formação de gerações de cinéfilos, com suas análises reflexivas, destacando a importância da produção artística brasileira. Autor dos livros “Cinema brasileiro nos jornais” (2018), “Celso Marconi: o senhor do tempo” (2020) e de artigos sobre cinema publicados no Brasil e no exterior. Atualmente, escreve críticas no site cinemaescrito.com e dirigiu os curtas-metragens “Eiffel” (2008) e “O homem dela” (2010). É mestre em Comunicação e atuou como repórter e crítico de cinema no Jornal do Commercio (Recife, 1997-2001) e na Folha de Pernambuco (2004-2015). É coordenador do Cinema da Fundação Joaquim Nabuco, além de ter sido coordenador do bacharelado em Cinema e Audiovisual da Uniaeso e ocupou, ainda, o cargo de vice-presidente da Associação Brasileira de Críticos de Cinema.
Ao lado de Kléber Mendonça Filho, Joaquim foi responsável pela construção da identidade desse braço audiovisual da Fundaj, com programações que ajudaram na formação de novos públicos, cinéfilos e cineastas ao longo das duas últimas décadas.
Para entender a principal mudança na Lei de Cotas de Telas, que diz respeito ao número mínimo de exibição de filmes nacionais, podemos usar uma analogia. Segundo a nova lei, caso um cinema tenha apenas uma sala de exibição, ele deve separar 7,5% de suas sessões para estreias nacionais, o número mínimo da cota. “A solução para mim, claramente, seria a criação e o estímulo de abertura de mais salas de cinema e de mais telas”, assevera Joaquim.
Já as redes que administram 201 ou mais salas no território nacional, devem reservar 16% de sua agenda para a exibição de filmes brasileiros, a cota máxima. Caso haja a exibição de um mesmo título, brasileiro ou não, que ultrapasse a proporção estabelecida, o percentual mínimo de sessões de filmes nacionais indicados pela Ancine também deverá ser ampliado. “No Brasil, existem entre 3,5 mil e 4 mil salas. E o país é imenso. Essa quantidade de salas de cinema é muito pequena em termos comparativos”, observa Joaquim. Pense em semanas de estreias de grandes estúdios hollywoodianos, como Disney e Marvel: cinemas ocupados quase que em sua totalidade pelo mesmo filme não deverão ser mais uma realidade. Para entender melhor essas nuances, batemos um papo com Luiz Joaquim. Confira:
Entrou em vigor a lei da cota de tela, que obriga os cinemas a reservar um percentual mínimo para sessões de filmes brasileiros. Joaquim, queria que explicasse primeiro o que muda para os realizadores do país e, segundo, o que muda para o público?
A nova Lei de Cota estimula que sejam lançados nas salas de cinema do Brasil mais filmes brasileiros, ou seja, que as salas de cinema coloquem em cartaz um volume maior os diversos títulos prontos para serem distribuídos no Brasil. Agora o ponto é pela quantidade de títulos a serem exibidos. Aumenta um pouco a quantidade de dias, mas o foco dessa nova lei é que haja mais filmes estreando na data correta e estipulada pelo distribuidor para ser lançado.
Não é exatamente uma solução, porque, na medida em que esses filmes são lançados e é cada vez maior a quantidade de títulos prontos para serem lançados no Brasil, então, o que acontece é um “engarrafamento” na agenda de lançamentos de filmes brasileiros com filmes estrangeiros. E, nos últimos meses, de filmes brasileiros com filmes brasileiros.
A minha visão é diferente: é difícil responder o que é que é positivo, porque não vejo exatamente como uma solução, mas uma tentativa de solução que não sei se será eficaz. A solução para mim, claramente, seria a criação e o estímulo de abertura de mais salas de cinema e de mais telas. É claro que salas de cinema não de grandes grupos comerciais, não de grandes redes, mas de salas de cinemas com o perfil do Cinema São Luiz, Cinema do Parque, do Cinema da Fundação Joaquim Nabuco, no Recife, que praticam o lançamento, a estreia dos filmes brasileiros de maneira muito mais avançada do que essa nova legislação estabelece agora. Tudo o que essa nova legislação define, o Cinema da Fundação, por exemplo, já faz, desde o princípio. Aliás, faz a lei desde o princípio, que é sempre de lançar um filme na data estabelecida de estreia nacional pela distribuidora e dar nome à criação, dando metade das sessões, no mínimo, na semana de estreia desses filmes, e não deixando essas produções em cartaz apenas por duas semanas. No mínimo, duas semanas, mas geralmente três ou quatro semanas. Isso me parece não estar na lei, o que para mim é algo extremamente importante, manter o filme em cartaz numa horizontalidade, mantido em cartaz por mais tempo do que apenas duas semanas ou uma semana.
Esses filmes brasileiros pequenos, digamos assim, precisam ser descobertos. E eles só serão descobertos pelo velho e bom “boca a boca”. E para isso acontecer é preciso tempo para a informação circular, seja virtual, pelo Instagram, Twitter, Facebook… Ou seja, boca a boca concreto, personificado da mesma forma.
Muitos consideram uma espécie de “cota”, estipulando que um número determinado de salas sejam reservadas para a exibição de estreias de longas nacionais. O que acha desse termo? Considera que é uma maneira de incentivar a produção e o consumo de cinema nacional?
Não diria que a criação de salas específicas apenas para lançar filmes brasileiros seja uma solução. Pode ajudar de alguma forma, mas essa sala vai ficar estigmatizada e é ruim para qualquer empreendimento ficar assim. No final das contas, filmes como, por exemplo, “Entrevista com o Demônio” – uma produção australiana, mas que ganhou o mundo pelas suas qualidades – acaba estimulando o espectador desse filme a ir para aquela sala para ver o lançamento nacional. Ou seja, a mescla de programação é positiva para os filmes brasileiros também, e não apenas porque essa ideia de ter uma sala específica para lançamentos de filmes brasileiros é quase como criar um canal de streaming, no qual não vai ser frequentado sempre por aquele espectador que quer ver aquele filme específico e não todos os filmes brasileiros que estão sendo lançados a cada semana. Isso pode ser muito interessante para o distribuidor, mas para o exibidor não sei se seria interessante não.
A proporção varia entre 7,5 e 16%, a depender do número de salas disponíveis. Como avalia esse percentual?
É um percentual modesto. A gente precisa entender o seguinte: no Brasil, existem entre 3,5 mil e 4 mil salas. E o país é imenso. Essa quantidade de salas de cinema é muito pequena em termos comparativos. Um país gigante em comparação com a França, por exemplo. Esse número é ridículo. E esse percentual está exatamente vinculado ao fato de que dessas 3.500 salas a 4.000 salas, bem mais do que 50% delas pertencem a grandes redes exibidoras, complexos de exibição multinacionais que foram criadas para exibir filmes estrangeiros, particularmente, o cinema americano. Isso é uma história a secular aqui. Então, enquanto não houver um estímulo de abertura de novas salas de cinema com perfil mais conceitual e mais autoral, então esses percentuais continuarão pequenos.
A referida “cota” não é nova, sido implementada pela primeira vez em 1932, pelo então presidente Getúlio Vargas. O que é importante destacar dessa trajetória e o reflexo para os dias atuais?
A cota é uma estratégia, um movimento político no Brasil, que começou muito modesto. Na época de Vargas eram cerca de quatro dias por ano que eles terminavam a exibição de filmes brasileiros nas salas de cinema. Isso foi evoluindo, ora de maneira mais intensa, ora de maneira menos intensa ao longo dos governos de lá para cá. É inegavelmente importante, mas esse tipo de determinação não é eficaz se não houver algum tipo de, logicamente, de supervisão, acompanhamento e punição nas salas de cinema que não cumprem, já que é uma lei que precisa ser cumprida.
E não vejo notícias, pelo menos, não tenho muitas informações sobre uma sala que foi punida porque não cumpriu a cota de tela. E aí a gente lança perguntas:”será que todas as salas são realmente corretas?”, “E por esse motivo a gente não tem notícias sobre isso?”, “Ou será que há algum tipo de relaxamento para alguns complexos?” E me lembro de lançamentos como “Os Vingadores”, “O Homem-Aranha”, por exemplo, que ocupam mais da metade das salas de cinema do Brasil. Como isso acontece?
Essa política é uma exclusividade brasileira ou outros países do mundo adotam essa prática?
A política da preservação e da proteção do que é criado no audiovisual nacional é uma prática do mundo. Aqui na América Latina, um bom exemplo é o da Argentina, que não apenas estabelece cotas diferentes das brasileiras, mas também promove o seu cinema no exterior de maneira muito efetiva, com investimentos. Pelo menos antes do governo atual, essa prática acontecia na Argentina. Não sei como é que está hoje lá, que está tudo de pernas para o ar, de cabeça para baixo, com esse presidente maluco. A França é o grande exemplo mundial de cuidado com a sua produção cinematográfica internamente. E também, mais uma vez, não apenas internamente, talvez seja o país, depois dos Estados Unidos, que consegue difundir para o resto do mundo com a maior competência a sua cinematografia. É muito bacana ver um governo dar o cuidado e a atenção que a cultura e o cinema estão nesse pacote.
Jean-Claude Bernardet já afirmou que o brasileiro não vê filmes, mas lê legendas. Concorda com o crítico e professor considerado um dos mais importantes críticos e teóricos do cinema brasileiro?
Essa pergunta é interessante. Não conheço o contexto dessa frase de Jean-Claude, uma frase muito relevante, mas talvez ela esteja mais relacionada a um tempo passado. Há um parênteses que precisa ser aberto: no segundo governo do presidente Lula, o poder aquisitivo do brasileiro melhorou, as classes C e D tiveram acesso a bens materiais e a ter bens de consumo que não possuíam antes. Um desses bens era ir ao cinema e também ter acesso à TV paga. Na segunda metade dos anos 2000, isso começou a se tornar algo comum e acessível para boa parte da população. E, nesse sentido, as classes D e C tinham preferência de ver filmes dublados e não legendados. Isso é história: não é à toa, as TVs a cabos ofereciam uma quantidade grande de canais legendados e, ao longo dessa cultura da classe C de consumir muito as TVs pagas, elas começaram a oferecer opções alternativas de canais dublados. Isso acabou migrando para as salas, pelo menos para os complexos de cinemas. As salas começaram a oferecer ali no início dos anos 2010 mais opções de filmes dublados e a demanda só fez crescer.
Ao observarmos os últimos dez anos, fatalmente, nos complexos de cinema a quantidade de filmes dublados é maior do que a quantidade de filmes legendados em algumas regiões e em alguns complexos são exibidos apenas filmes dublados. Aqui no Recife um exemplo clássico é o Shopping Tacaruna.
Historicamente, até os anos 80, a maioria das salas de cinema do Brasil só projetavam som mono, ou seja, com a caixa de som instalada atrás da tela. Por isso, existiu uma histórica reclamação de que o som do cinema brasileiro é ruim. Isso ficou no passado, mas era recorrente quando as pessoas iam para as salas de cinema. Filme brasileiro sem legenda o público tinha dificuldade de escutar o que os atores falavam, porque era apenas uma caixa. A culpa nem era exatamente da captação do som do filme, mas da limitação de distribuição de cinema. Essa mesma limitação, complicação e má qualidade do som era apresentada nos filmes estrangeiros também, mas como os que vinham de fora tinham a legenda, então o espectador não tinha problema em assimilar tudo que estava sendo colocado como diálogo no filme, pois era possível ler, não ficava limitado a ouvir, e no caso do som, quando a gente perde alguma coisa, a gente perde, no caso da imagem. Algo que é mal visto, pelo menos, fica de alguma forma registrado, mas o áudio é perdido, acha que entendeu e, simplesmente, não entendeu e passou.
O cinema brasileiro ainda sofre empecilhos e preconceitos enfrentados pelas obras nacionais?
Sim, ainda sofre preconceitos, não aquele preconceito dos anos 1980, que trazia um ranço da pornochanchada. Todo mundo considerava que o cinema nacional só tinha sacanagem e não prestava. Hoje, não há esse tipo de preconceito, mas, curiosamente, a grande maioria da produção que circula no país é vista pelo grosso das pessoas como produções militantes ou experimentais demais ou mal produzidas ou com algum tipo de restrição comunicativa. Para a grande maioria das pessoas o cinema é apenas diversão. São poucos os filmes brasileiros que conseguem conciliar.
Vale ressaltar que essa é uma perspectiva generalizada do público nacional. Estou generalizando aqui. A minha impressão é que as pessoas percebem o cinema brasileiro como não competente em conciliar entretenimento, fácil comunicação e questões profundas como, por exemplo, sobre a existência, a vida e o ser humano.
Sofrendo elitismo, complexo de inferioridade e desvalorização cultural, qual é o futuro do cinema brasileiro?
O futuro do cinema brasileiro é bom, mesmo com todas as complicações e com todas as percepções enviesadas do que significa o cinema brasileiro para a grande maioria das pessoas. Porém, é um futuro que está muito dependente do governo em vigência. É só olhar um pouquinho para trás, no governo anterior, não gosto de falar o nome daquela criatura [ex-presidente Bolsonaro], e quase o cinema brasileiro ia para o espaço.
A possibilidade de se produzir cinema do Brasil foi colocada em xeque, não apenas cinema, mas tudo que diz respeito à liberdade de expressão. Porém, o cinema está muito vinculado ao governo vigente. É bom porque a gente vê a cada ano surgindo realmente talentos, e não é apenas eu que quem estou afirmando isso, são os nomes respeitados em festivais de cinema no Brasil e fora também, e isso é um fato. Agora no que diz respeito à aceitação do público, que é essa a pauta aqui, isso é difícil de dizer, pelo menos a curto prazo se será exitoso ou não.
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