TU TÁ PENSANDO QUE EU SOU LÓKI, BICHO?
Documentário sobre Arnaldo Baptista ilumina vida e obra de um dos mais excêntricos e idiossincráticos artistas que a música brasileira já produziu
Por Eduardo Carli
LÓKI
Paulo Henrique Fontenelle
[Brasil, 2008]
Um gênio incompreendido? Um mito vivo? Um brilhante arquiteto de canções pop? Um loucão que fritou os miolos no ácido? Um artista versátil com alma de criança? Uma prova viva do poder devastador de um coração partido? Todas essas hipóteses – e muitas mais… – podem servir para descrever o eterno menino Arnaldo Baptista, uma das figuras mais excêntricas, pitorescas e inesquecíveis da história da música nacional.
Na nova cine-biografia do artista, produzida pelo Canal Brasil e dirigida por Paulo Henrique Fontenelle, raras entrevistas e imagens de arquivo elucidam um pouco do percurso artístico e existencial do ex-Mutante através dos tempos: suas bandas, amores, casamentos, manicômios, exílios, tombos e vôos. Em duas horas e pouco de passeio, mergulhamos na alma do cara e todos os que o rodearam, num percurso repleto de revelações comoventes e com um desfile de brilhantes loucuras.
Lóki poderia ser um pungente documentário sobre a queda de um rock star no labirinto da loucura, das drogas e da auto-destruição. Mas a chincha, a essência, a gema da coisa está em outro lugar: na descrição de como Arnaldo Baptista, mesmo aos trancos e barrancos, conseguiu se tornar algo muito mais belo: um sobrevivente. Pode ter chegado ao aqui-e-agora meio estropiado, na mente e no coração, e com algumas dúzias de parafusos soltos na cabeça, mas chegou. E é comovedor que ele ainda esteja entre nós, falando, pintando, cantando, brincando, iluminando e marcando época.
Quem pode negar que foi uma inacreditável volta por cima? Ele, que depois de integrar o trio mais genial da história do rock nacional, passou por várias pedreiras, provou que saiu delas vivo e tendo o que comunicar – o que já é grande coisa. Pois foram muitas orgias de tomação ácido. Cinco internações em hospícios. Um exílio de eremita numa chácara em Minas. Uma tentativa de suicídio seguida de coma. Três casamentos (o último ainda vigente). E pelo menos um coração partido em mil pedaços – que Rita Lee, seu primeiro amor, não parece ter feito esforço algum para ajudar a curar. Tudo combustível para o mito.
Apesar de fiel aos fatos, o documentário beira a elegia, montando um mosaico de hinos em louvor ao homenageado. O panteão de entrevistados que dão declarações extremamente positivas sobre Arnaldo só contribui para adicionar ainda mais densidade ao seu status mitológico. Para Tom Zé, Arnaldo Baptista é o depositário de uma sabedoria vivida que transcende o domínio da Academia e do conhecimento livresco, sendo descrito como um Iluminado com quem temos muito a aprender. Nosso pequeno Buda!
Para o maestro Rogério Duprat, foi ele o grande criador dentro dos Mutantes, que por sua vez foram os grandes criadores dentro do tropicalismo, e por isso o responsável direto por tudo que ocorreu na música brasileira de 1967 para frente. Para Lobão, compôs um dos 10 melhores álbuns da história da música nacional, Lóki. Já o irmão e mutante Sérgio Dias trata-o com reverência e o defende da acusação de ser um louco-bobo qualquer, destacando a espantosa sensibilidade que possui Arnaldo – e perguntando, provocativo: “quem é louco, Van Gogh ou a gente?”
O fã Sean Lennon, um dos responsáveis pelo “re-despertar” de Arnaldo na mídia após um longo período de ostracismo, chegou a considerá-lo o “Syd Barrett brasileiro”, estabelecendo altos paralelos entre o menino mutante e o genial e esquizofrênico primeiro vocalista do Pink Floyd.
Para o também fã Devendra Banhart, os Mutantes foram melhores do que os Beatles (!) em termos de ousadia, criatividade e capacidade de unir ecletismos radicais dentro da mesma canção. Zélia Duncan, que assumiu o papel de vocalista no revival dos Mutantes, descreve-o como “a encarnação da ‘Balada do Louco’” por conseguir encontrar um modo de ser genuinamente feliz, mesmo vivendo de seu próprio modo num mundo de fantasia completamente idiossincrático.
Já Kurt Cobain, no auge do sucesso do Nirvana, quando passou pelo Brasil para tocar no Hollywood Rock, derreteu-se em elogios à heróica banda que enfrentou um regime militar perverso a golpes de irreverência e psicodelismo. Escreveu para Arnaldo uma carta, que caiu na Internet e assim se espalhou para o resto do mundo, elogiando o músico, que mal sabia quem era esse tal de Cobain.
Os exemplos poderiam se multiplicar… mas só por esse grupo seleto de fãs e admiradores de Arnaldo Baptista já se vê o poder do retrato que Lóki traça. Partindo do passado distante, onde narra rapidamente a infância e a adolescência do artista, o filme chega até tempos mais recentes. O lançamento do disco de inéditas “Let It Bed”, em 2002, produzido por John, do Pato Fu, e distribuído nas bandas de jornal pela revista criada por Lobão, trouxe-o de volta à cena com um álbum elogiado.
Depois, é a hora do filme mostra o quanto o “revival” dos Mutantes foi extremamente bem-sucedido, com DVD gravado em Londres e ovações em Nova York, mostrando ser algo muito maior que uma mera turnê caça-níqueis. Sabe disso quem esteve nos dois brilhantes shows que os novos Mutantes fizeram em São Paulo nos últimos anos: na Virada Cultural, em 2008, e no aniversário da cidade, em 2007, em ambas ocasiões tocando para um público que ultrapassava as 50 mil pessoas. Se foi bom? Como diria Devendra Banhart: “em uma palavra: bompracaralho!”
Já Rita Lee é assunto tabu quando se trata da vida de Arnaldo Baptista. Os dois, de namoradinhos juvenis e casal sacramentado pelos laços do santo matrimônio, passaram a um quase completo afastamento. Rita, como era de se prever, não dá declaração alguma para o filme. Mas Sérgio Dias aponta, sem firulas, que a saída de Rita Lee dos Mutantes, o que daria início à fase prog chatona e viajandona da banda, tem pouco a ver com diferenças musicais. Nada a ver com a suposta falta de virtuosismo instrumental dela, que a tornaria inapta a acompanhar os Mutantes em suas novas viagens nas estratosferas sônicas. Sem meias palavras, Sérgio indica que foi o fim do casamento entre Arnaldo e Rita foi o que causou a saída dela da banda e, assim, o desfazimento do trio mais genial da história do rock nacional.
Lóki é um documento histórico de primeira linha que homenageia uma de nossas figuras musicais mais excêntricas, idiossincráticas e doidamente geniais. Como filme, tem a vantagem de não ser uma mera descrição de um percurso pessoal, mas uma panorâmica de uma época cultural efervescente, dominada pela psicodelia, pelo tropicalismo, pelo LSD e pela experimentação vivencial livre e solta.
Além do mais, é uma meditação sobre a loucura, que nos convence, mais uma vez, que não há nada de errado em ter um ou outro parafuso solto e dizer coisas sem pé-nem-cabeça – e que louco mesmo é quem diz que não é feliz. Arnaldo Baptista aparece aqui como uma pessoa no limiar entre a doidice e a genialidade e um convite vivo para que reencontremos a simplicidade da infância perdida.
Arnaldo sempre jurou: “é bem melhor não ser um normal / se posso crer que Deus sou eu”. O filme só traz mais fiéis a este credo. Se Lóki, o filme, servir para deixar os normopatas menos orgulhosos de sua insossa normalidade, já terá feito muito bem. Mas faz mais: ergue um monumento sobre a ascensão, queda e ressurreição desse adorável pimpolho pirado que o Brasil faz muito bem em louvar.
NOTA: 9,0
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