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Foto: Divulgação.

Leonardo Lacca transforma memórias do avô em reflexão sobre cinema no documentário “Seu Cavalcanti”

Filme explora a relação entre afeto, ficção e realidade

O documentário Seu Cavalcanti, dirigido por Leonardo Lacca, impressiona pelo empreendimento fílmico feito ao longo de uma vida: foram duas décadas de filmagens e dez anos de montagem. A obra, exibida na 27ª Mostra de Cinema de Tiradentes, parte do registro do cotidiano de Severino Cavalcanti, ex-policial e avô do cineasta, para construir uma narrativa que mistura memórias familiares, encenação e reflexão sobre o próprio ato de filmar. A estreia comercial será na próxima quinta (11/09).

Lacca explica que o projeto nasceu de forma espontânea, a partir do acesso a uma câmera emprestada da faculdade. “Eu comecei a registrar ele porque eu tive uma câmera à mão, uma câmera da faculdade que ficava dormindo na minha casa de vez em quando, enfim. E essa câmera eu aproveitava para filmar ele. E mais ou menos uns cinco ou seis anos depois teve o Janela Internacional de Cinema do Recife. E naquele momento, o Kleber Mendonça Filho e a Emilie Lesclaux me convidaram para fazer uma vinheta do festival. E eu estava com as imagens do meu avô e ainda me lembro como se fosse hoje: eu me voltei para aquelas imagens pela primeira vez com propósito”, disse em entrevista à Revista O Grito!.

O convite resultou em uma série de vinhetas exibidas no festival e transformou Cavalcanti em uma figura reconhecida pelo público. “Eu descobri a potência das imagens e comecei a fazer umas cinco ou seis vinhetas sobre ele, com ele. A galera do festival adorou e começou a exibir, e ele se transformou em uma cara do Janela”, afirmou o diretor.

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O diretor Leonardo Lacca ao lado de seu avô, Severino Cavalcanti (Foto: Divulgação).

Um projeto de longa duração

Sem roteiro prévio ou cronograma definido, a obra foi sendo construída a partir de experimentações. “O filme foi se desenrolando por vários caminhos e apontando várias direções. Foi ganhando forma, mudando, e ele ganhava forma na ilha de edição, a partir desse contato com as imagens. Não era planejado. A gente tinha a ideia na ilha, ia para a vida, filmava e pedia para ele fazer coisas, atuar, e assim por diante. Então, foi se desenrolando de um jeito muito natural, sem um cronograma específico. E aí calhou de levar 20 anos para ficar pronto. Desde quando eu comecei a filmá-lo até realmente lançar, são 20 anos. Mas foram mais ou menos dez anos de montagem”, comentou.

O processo de edição incluiu a decisão de incluir o próprio diretor como personagem. “Inicialmente, eu não queria estar no filme como presença. Mas fui entrando aos poucos a partir desse diálogo com os montadores. Quando estava no processo de finalização – digamos, aos 70% do progresso – eu compartilhei muito esse filme com o Kleber. A gente trocou muito. Eu acho que Retratos Fantasmas e Seu Cavalcanti são filmes-irmãos, se retroalimentaram. A gente trocou muita ideia sobre um e sobre o outro. Em algum momento, ele falou para mim: ‘Você tem que narrar esse filme’.”

Presença do diretor

A narração se tornou um elemento central da obra, funcionando como elo entre o público e o personagem. “Eu comecei a me debruçar sobre a narração e acho que me tornei um veículo de conexão entre as pessoas e meu avô. Eu virei também um personagem do filme, de uma certa forma. Acho que foi aí que as coisas se conformaram para um lugar que eu queria chegar, mas não sabia como. Eu não sabia como chegar nesse lugar universal, mas acho que a narração ajudou muito – e a minha presença também”, afirmou.

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Foto: Divulgação.

O diretor relata que o texto narrado foi criado de forma improvisada. “Eu aprendi muito nesse processo de narrar, porque a narração que eu fiz também não foi planejada. Eu cheguei e sentei para escrever. Na verdade, eu botava o filme para passar, me conectava com ele e gravava. Foi uma forma de improviso e também uma forma de atuação. Isso abre espaço para fazer outro filme narrado futuramente, por exemplo. Eu tinha algum preconceito tanto com minha voz quanto com a possibilidade de narrar o filme.”

Processo de descobertas

Ao longo das filmagens, Lacca lidou com situações em que precisou respeitar os limites do avô. “A gente tinha uma relação muito de intimidade. Mas existem coisas que ainda ficaram de fora, que envolviam, por exemplo, uma cena que eu filmei. Quando ele viu que eu estava filmando, ele falou: ‘Não filme, não. Não filme, não’. Ele virou para mim e, em algum momento, ele tinha essa consciência. Para ele, chegou no limite, e essa imagem eu parei de filmar e nunca usei. Essa imagem não está no filme.”

O cineasta também refletiu sobre os limites entre ficção e documentário. “Eu comecei a fazer o filme rejeitando muitas imagens que tinham cara de documentário. Depois, me libertei disso também e passei a olhar para as imagens como simplesmente imagens. O que importa não é se parecem ficção ou se parecem documentadas. O importante é que tenham potência e que se encaixem de acordo com nossa sensibilidade no filme.”

Entre o real e o imaginário

Lacca considera Seu Cavalcanti uma obra que transita entre os gêneros. “No final das contas, acredito também que todo filme é híbrido, todo filme é documentário e ficção. É como se eu tivesse voltado ao ponto inicial: eu estou fazendo um filme. E se estou fazendo um filme, tudo isso vem junto, em maior ou menor escala – numa escala mais definida ou mais indefinida, borrada e misteriosa. Esse filme é mais radical nesse sentido e tem esse mistério do que é e do que não é.”

Para o diretor, mesmo produções baseadas em fatos carregam um componente de invenção. “Se você vê um filme que diz ‘baseado em fatos’, mesmo assim ele vai ser uma ficção, porque não tem como ser outra coisa”, concluiu.

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