Quem não viu, ainda terá oportunidade de conferir o primeiro longa-metragem de ficção do cineasta pernambucano Léo Falcão. Sujeito Oculto ganha mais duas sessões no Cinema da Fundação Derby na terça, 26 e na quarta, 27, às 19h40. O filme mostra a história de Max (Gustavo Falcão) um romancista que, para superar um bloqueio criativo, procura se isolar em um lugar afastado para tentar produzir sua nova obra. Aluga então uma casa próxima a uma floresta e a um lugarejo, cujos estranhos habitantes aos poucos vão estabelecer relações com o escritor. Mas, as coisas começam a ficar confusas quando Max começa a ter visões e páginas escritas pelo antigo morador da casa aparecem na sua escrivaninha.
Não é a primeira vez que Falcão aborda a criação literária em um filme. No curta Lugar Comum, de 2002, os personagens criados por um escritor não aceitavam a história em que foram colocados. Desta vez, no entanto, embora a literatura seja, a princípio, o mote da trama, ela é pano de fundo para uma reflexão bem mais profunda. Sujeito Oculto é uma intrincada indagação do autor sobre o tempo e a memória. Roteirista hábil, em pouco tempo de narrativa Falcão nos coloca no seu jogo dramático e esse é o aspecto mais interessante do seu trabalho. Graças a uma mise-en-scène bem arquitetada, somos agarrados pela trama que transita entre o suspense e o terror e aproxima o filme a seara do cinema fantástico.
Tecnicamente, não resta dúvida que estamos diante de um filme muito bem pensado e cuja equipe correspondeu ao que o diretor queria. A cenografia, a iluminação e a fotografia ajustam-se de forma harmoniosa e o ótimo elenco consegue ser convincente em seus papéis finamente construídos. Essa narrativa tão bem orquestrada, todavia, quando a trama caminha para o desfecho, talvez tenha ficado esquematizada demais e ela perde um pouco de sua força, só recuperada na cena final quando o roteiro rompe com essa ordenação. Isso, porém, não desmerece de forma alguma o empenho de Falcão de se aventurar num gênero de obra cinematográfica na qual o cinema brasileiro não é muito afeito e nos oferecer um filme que merece ser conferido.
Leo Falcão é um artista múltiplo. É publicitário, escritor, cineasta, músico, doutor em design e hoje desenvolve trabalhos que inclui games e projetos transmídia. No seu currículo mais de 15 filmes de ficção e documentários nos quais atuou como produtor, roteirista e diretor. Conversamos com ele sobre o processo de criação de Sujeito Oculto.
O Grito! – O filme tem como mote principal o trabalho do escritor e como o ato de escrever é uma zona limite entre o real e a ficção. O que te fez levar isso para a narrativa cinematográfica?
Creio que o interesse em torno das muitas formas narrativas foi e é o que me move a estudar e a trabalhar com histórias há tanto tempo. Tem um quê de similar nos processos e nas angústias, e os dilemas expressivos e existenciais para mim andam sempre juntos. No mais, por consumir e ter interesses criativos em vários suportes, para mim é meio natural esse tipo de transição.
Você certamente vê semelhanças entre o processo da criação literária e da criação cinematográfica. Sujeito Oculto é uma tradução fílmica dessa aproximação?
Sim, totalmente. Apesar do cinema de ficção ser o que eu considero minha “casa”, foi na literatura que iniciei essa jornada e ali encontro uma espécie de forma “primal” de criação de histórias, por ser uma relação direta entre um autor e uma obra, sem muitas interferências ou colaborações criativas externas. Imagino que, tendo me radicando no cinema, essa inquietação forte terminou ganhando esse corpo.
O filme é uma espécie de jogo com um protagonista entranhado num labirinto do qual ele não consegue escapar. Essa ideia surgiu desde a criação do argumento ou ela foi tomando forma no decorrer da realização e só chegou a um desfecho na montagem?
Digamos que a estrutura estava lá, mas ainda tinha alguns pontos em aberto. Mas não dá para dizer que foi desde o argumento que ela estava fechada. O roteiro ganhou muitos tratamentos antes de ir para a análise técnica, e outros tantos, mesmo depois. A história ainda sofreu muita mudança na montagem (fomos de um corte bruto de 2h20min para um corte final de 1h47min). Mas alguns elementos não ficaram de fora: um conflito existencial em meio ao amálgama de histórias que, por fim, reflete questões existenciais mais amplas. Neste sentido, o desfecho ganhou nuances, mas de certa maneira permaneceu o mesmo, expressando as inquietações de sempre.
Seria exagero afirmar que Sujeito Oculto não é só um filme sobre o processo de criação literária, mas sobre as nossas relações com a passagem do tempo e a memória?
Acho que é mais sobre tempo e memória do que sobre criação literária, eu diria. Ou sobre a relação entre tempo e narrativa mesmo: uma coisa não existe sem a percepção da outra. O que é a memória senão uma história, e o que é uma história senão um fragmento de eventos recortados no tempo. E por outro lado, como perceber o tempo sem aferir à realidade uma cadeia de eventos perceptível e descritível?
O filme dialoga com o gênero fantástico, mas beira também a fronteira dos filmes de terror. Isso foi proposital?
Eu diria que é algo do gênero fantástico trazer esse diálogo fronteiriço com o terror (e vice-versa). Mas sim, algumas convenções são exploradas justamente nessa reconstrução (ou desconstrução, como preferir) desse processo criativo, que é também um processo um tanto destrutivo, me parece. Mas é curioso entender que essa exploração de gênero às vezes faz algumas críticas classificarem o filme como “terror”. No fim das contas, parece mesmo haver um quê de assombro no fantástico.
O filme se passa num local que parece não existir. Como foi a escolha da locação? E a casa, um elemento fundamental da trama, existe realmente ou foi especialmente construída para o filme?
A pesquisa de locação tinha algumas missões que eram importantes do ponto de vista expressivo. A mata, a vila isolada, a casa isolada. Seja para refletir essa perspectiva do fantástico quanto para suprir as necessidades dramáticas da trama, as locações foram buscadas e selecionadas considerando essas missões. A casa é particularmente algo que traduz essa busca por elementos, eu diria. Ela existe apenas dentro do filme, tendo sido composta em três municípios diferentes: a fachada foi construída numa mata em Aldeia; o térreo foi cenografado num sobrado em Olinda; e o quarto composto num estúdio em Casa Forte, Recife. No fim das contas, a construção só existe mesmo na mente da plateia.
A narrativa de Sujeito Oculto opera com elementos dramáticos que puxam o espectador para dentro da trama e isso, para mim tem muito a ver com a mise-en-scène. Você poderia discorrer um pouco sobre a cenografia, a iluminação e a trilha sonora e como elas foram concebidas para provocar essa sensação em quem o assiste?
Os aspectos estilísticos do filme deveriam refletir amálgamas de histórias, mas também de mitologias e até de tempos flutuantes, justamente para conferir fluidez ao cenário narrativo. Neste sentido, a cenografia de Carla Sarmento jogava com elementos místicos e referências de diversas épocas, assim como o figurino de Chris Garrido. A fotografia de Beto Martins também procurou dar atmosferas diferentes para o interior da casa e para a atmosfera criada em torno da vila, o que culminou numa densidade quando o protagonista estava sozinho e numa difusão quando ele interagia com outras personagens. E quanto a trilha, DJ Dolores se utilizou de sua peculiar e notável habilidade de colocar culturas e sonoridades para conversar, numa concepção musical que estranhamente soa familiar ao mesmo tempo que se apresenta como muito única. Enfim, acho que tudo se encaixou de maneira muito orgânica no final.
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