La Casa de Papel, a série espanhola mais famosa do mundo, e o produto de ficção de língua não-anglófona mais bem-sucedido da Netflix, estreou sua quarta temporada neste último dia 3 de abril. Muito mais tensa do que a anterior, com mortes e reviravoltas, algumas previsíveis, outras nem tanto, a série volta a mostrar sua eficiência como thriller de ação e drama, deixando as cenas românticas em segundo plano. A ascensão das mulheres na trama, com Tóquio à frente é um traço que lembra a famosa frase de Nairóbi na terceira temporada: começa o matriarcado. A julgar pela última cena, contudo, com a inspetora Alicia Sierra (Najwa Nimri) descobrindo o esconderijo do Professor (Alvaro Morte), não vai terminar por aqui.
O bando de nove ladrões liderados pelo nerd Professor (Alvaro Morte), que sabemos agora chamar-se Sergio, alçou a fama não somente por conta do esmero de seu roteirista e criador, Alex Pina, e de diretores e produtores, mas por aquela máxima que Eric Hobsbawm observava em seu clássico ensaio Bandidos – os ladrões mais populares do mundo são quase sempre os assaltantes de bancos. Basta lembrar-se de Dillinger.
Para completar tudo isso temos a irresistível trilha sonora puxada por “Bella Ciao”, considerada hino partigiano da Segunda Guerra, música contagiante que regravada pela dupla formada pelo Professor e seu irmão Berlim numa das cenas mais antológicas da série, se tornou um sucesso e teve diversas regravações até com versão de música eletrônica.
A máscara de Dalí, símbolo do surrealismo, usada pelo bando, chegou a ser alvo de disputas por parte da Fundação Dali, pois se tornaram corriqueiras em Halloween, Carnaval, partidas de futebol. E pior, ladrões de verdade se esconderam atrás dessas máscaras para realizar assaltos na Argentina, Chile e Brasil. A máscara lembra Salvador Dalí, mas não é uma reprodução fiel, diz a produção. Muita gente que usa a máscara, que se converteu, assim como “Bella Ciao”, num símbolo de reivindicações sociais em diferentes países do mundo, provavelmente não a associa ao artista catalão. Os próprios assaltantes, como mostra a série, não sabem quem foi Dalí, esse “jeca do bigode?” na visão de um deles.
Juntamente com a nova temporada chega o documentário La Casa de Papel, o Fenômeno, revelando os bastidores das gravações e entrevistando equipe, roteiristas, atores. A série produzida pela Atresmedia em parceria com Vancouver, estreou no canal Antena 3, de Espanha, e como revelam as entrevistas, teve êxito moderado em seu país de origem. Acabou entrando para o catálogo da Netflix sem grandes pretensões. Os números dispararam em todo o mundo, e a Netflix entrou no projeto. Hoje, seus atores são tão famosos que mal podem sair às ruas.
A partir da entrada da Netflix, surgiu um novo plano de assalto, desta vez ao Banco da Espanha. O documentário nos deixa entrever conflitos e angústias de seus criadores, dos atores e atrizes, que centram a fala no antes e depois que a série estourou, e mostra ainda como foram filmadas as famosas cenas aquáticas do cofre, e até mesmo detalhes sobre os lingotes de ouro. Mas não vai fundo na questão que não quer calar. Os ladrões de Casa de Papel são a versão mais contemporânea do que Hobsbwam chamava de “bandidos sociais”, panteão ocupado por gente de todos os rincões do planeta, de Robin Hood ao bandido Giuliano, passando pelo nosso Lampião.
O bando liderado pelo enigmático Professor só rouba os poderosos, é contra a tortura – fazem campanha na última temporada contra a prisão injusta de Rio-Anibal Cortés (Miguel Herran), e saem às ruas, apoiados por populares e cidadãos que passam a usar a máscara. Os populares fazem plantão em frente ao banco para apoiar os assaltantes, agora milionários, em seu articulado discurso antissistema e anticapitalista. Além disso, fazem chover notas de euros em plena Madri, jogadas de um zeppelin. E existe algum tipo de instituição mais odiada do que os bancos?
Sim, na verdade sim. As democracias estão ruindo, desmoronando, solapadas por denuncias de corrupção. A hipocrisia dos discursos de direitos humanos, os estados policiais que governam para a elite, são questões que afligem não somente a Espanha, mas o mundo inteiro. Os personagens são sempre conscientes da sua função dentro desse jogo.
“Muito cuidado”, diz o Professor logo na primeira temporada, “porque se houver uma só gota de sangue vamos nos transformar de Robin Hoods em filhos da puta”. Gênio do crime, ele arrebata o coração de Lisboa-Raquel Murillo, e é um modelo de comportamento ético, em contraponto a seu antagonista no amor, o investigador forense Alberto Vicuña (Miguel Garcia Borda), abusivo e machista.
Na verdade, eles se parecem não com audaciosos ladrões, mas sim com qualquer cidadão comum, que não encontra mais perspectiva de participação naquele mundo de benefícios que ele vê na televisão, nos realities, nas novelas, nas revistas de fofocas, e decide dar um basta. Todos sonham em viver bem com a família em algum lugar, encontrar o verdadeiro amor, casar-se, ter filhos, após dar o grande golpe. Não são profissionais do crime, são aventureiros.Tão românticos que acabam seduzindo reféns, como se vê pelo caso do amor entre Denver (Jaime Lorente) e Estocolmo (Esther Acebo).
Até mesmo os sádicos e doentios como Berlim (Pedro Alonso) – aliás, um dos mais populares personagens da série -, ou o medíocre Arturito (Enrique Arce), em algum momento, são humanizados. A função de Berlim, que agora só vive em flashback, dentro do grupo é de certa forma substituída pelo seu parceiro sudaca Palermo (Leopoldo de la Sierra). Homossexual assumido e misógino, ele mostra o lado ambíguo dessa idealização, e não teme arruinar todo o plano por pura vaidade e, certamente, porque afinal é um bandido.
A série é narrada por uma mulher, assaltante, delinquente, a impulsiva Tóquio (Ursula Corberó), que finalmente deixa de representar apenas uma jovem rebelde para assumir papel de comando. E embora o cérebro do assalto seja o Professor, esta quarta temporada assinala a ascensão ao matriarcado que era profetizada por Nairobi (Alba Flores), na terceira temporada, e que também se tornou meme, mas que infelizmente deixa a série. Sua morte é um dos pontos altos da trama.
Tóquio arrebata a liderança deixada a cargo de Palermo, e não hesita em tomar atitudes. Estocolmo, a Monica Gastambides, evolui de mocinha apaixonada que se une ao grupo por amor, e faz jus a sua participação no grupo. Lisboa, a ex-inspetora Raquel Murillo, interpretada pela atriz basca Itiziar Ituño, reafirma seu papel de mulher forte, mas não é mais a única mulher na polícia, onde agora a inspetora Alicia Sierra ocupa o papel de vilã, uma máscara de frieza e perversidade personificada por uma mulher grávida com franjinha e falso ar de adolescente.
Sem falar na personagem transexual Julia, que se converte em Manila, interpretada pela atriz Belen Cuesta. Após a atuação traíra e misógina de Palermo, que solta o vilão Gandia (José Manuel Poga), o chefe de segurança do Banco de Espanha, responsável pelos momentos mais densos e trágicos desta temporada, por não suportar a ideia de perder a liderança para Tóquio, tudo indica que as mulheres vão crescer ainda mais. A série reafirma seu fascínio em tempos de pandemia, de recessão absoluta, de caos, porque justamente representa a falência de um projeto neoliberal.
A Casa de Papel está disponível no Netflix.