Juliano Holanda acaba de lançar o álbum visual A Verdade Não Existe, onde apresenta 10 canções inéditas e aparece em versão solo, acompanhado apenas do violão depois de anos formando duplas, trios e coletivos. A parte visual, um documentário dirigido por Mery Lemos – que também assina o roteiro -, teve lançamento simultâneo no site, canal do youtube e Instagram do artista. O Centro do Recife se torna paisagem dos visuais e estúdio de gravação paras faixas do álbum, em um questionamento às aparências que pairam ao redor do músico.
O minimalismo do voz e violão é uma vontade antiga do cantor, que tem o instrumento como sua ferramenta principal, e ainda dialoga com as suas raízes culturais – Juliano é natural de Goiana, na Zona da Mata Norte.
Em um papo com A Revista O Grito!, Juliano destrincha suas inspirações para o disco, o processo de composição das faixas, e toda a discussão narrativa sobre temas contemporâneos como a propagação da arte na era da informação, a relação das grandes empresas como plataformas de conteúdo e a própria noção de verdade em meio às bolhas informativas. Leia abaixo a conversa na íntegra.
O seu último álbum, Por Onde As Casas Andam em Silêncio, é composto somente por baixo elétrico e voz. Agora, em A Verdade Não Existe, você retorna só com voz e violão. Qual a motivação para esse minimalismo?
Foi um disco pandêmico. Acho que só tem uma ali que eu já tinha [produzido] antes, todas as outras foram feitas sob aquela situação pandêmica, porque acabou que eu produzi muita música. Fiz duzentas músicas ou mais. Parei de contar quando fiz duzentas. Gravei muita coisa. Gravamos com Zélia Duncan (tem quinze parcerias no disco), e fiz, apenas com ela, umas oitenta.
Eu acho que o Por Onde As Casas Andam em Silêncio abriu para mim uma possibilidade, porque, por pura coincidência, ambos os discos têm músicas só minhas, sem parcerias, e eu sou um cara que compõe muito em parceria, mas por conta do discurso da pandemia, do isolamento, acabou que as coisas que eu queria dizer eram aquelas que estavam ali e agora o A Verdade Não Existe tem uma linha de discurso, que foi proposta por Mery Lemos, que é quem dirige o documentário, e acho que ela percebeu uma linha de um certo tipo de canção. Eu produzo tanta coisa que é complicado juntar essas partes diferentes sob o risco de ficar muito díspar, uma salada de fruta exageradamente variada, então ela decidiu ordenar as peças dessa salada de uma maneira mais coerente.
Para mim estava muito difícil escolher esse repertório, fiquei tentando, dando voltas, até que ela chegou com essa proposta. Pegamos essa música, “A Verdade Não Existe”, como a medula do disco e todas as outras, por uma questão de aproximação, ao redor dela. Ela é o centro e todas as outras ao redor dela. Vai entrar no disco o que couber dentro dessa órbita que ela propõe, e aí, por coincidência, calhou de ser só músicas minhas, por que hora nenhuma foi falado que tinham que ser minhas.
A motivação, eu não sei. Quando o discurso se estabeleceu, eu tinha uma vontade antiga de ter um disco voz e violão, antes até de ter feito baixo e voz. É isso que eu falo no documentário, eu estava devendo isso ao violão, também, que é meu instrumento principal. Também por conta da Reverbo, porque o violão é a tônica, porque o espetáculo são essas pessoas acompanhando [a música] só pelo violão, e quando veio a pessoalidade do repertório e a ideia de gravar parte [do disco] estúdio e parte na rua, fazer “a coisa” voz e violão pareceu ser algo com uma logística mais clara.
Quais são essas raízes que você menciona e por que essa necessidade da reaproximação com o violão?
Eu sou de Goiana, [Zona da] Mata Norte, e lá, apesar de ser uma área que é muito permeada pelo Cavalo Marinho, pelo Maracatu Rural, isso tá no tipo de música que eu faço, de uma maneira muito enraizada e muito sutil. Talvez na coisa da escrita, no estudo das formas fixas, nas sextilhas, na forma de escrever, um pouco, eu acho que acabo carregando esse sotaque. Mas, como toda raiz, é uma coisa que dá suporte e que, algumas vezes, não aparece tanto, pois está submerso.
No entanto, o meu instrumento, quando comecei a tocar, era o violão, porque na Mata Norte existe um cancioneiro dali. Como referência, na minha cidade tem Acioli Neto; Michael Sullivan, que hoje é meu parceiro, estava ali do lado em Timbaúba. Tem toda uma construção cancionista, uma tradição de onde eu venho.
Quando vim morar em Recife, naturalmente, acabei caindo numa coisa de rock, então sempre fui o cara ligado a bandas, toquei com bandas a vida toda, sempre toquei guitarra, então acabei indo para esse lado da guitarra. Mas o que eu chamo de raiz é exatamente esse lado cancionista, e quando fui lançar meu primeiro disco, Arte de Ser Invisível, isso brota novamente, acho que até com mais força do que antes, e eu venho numa constante relação com isso.
Esse disco de agora também rende homenagem a esse universo cancionista da Mata Norte, que tem a ver com a seresta, tem a ver com um tipo de construção melódica que não é exatamente a construção melódica da MPB hegemônica, digamos assim. Acho que o faço passa mais por uma música que parte do texto, e acho que isso tá mais evidente nesse disco do que qualquer outro que eu tenha feito.
Sua poesia, principalmente no último disco, é muito sobre uma análise cotidiana, tanto nas questões particulares do isolamento social como questões coletivas, sociais e políticas. Essa análise do dia a dia também esteve no processo de composição desse novo disco?
A Verdade Não Existe, olha, talvez não como uma crítica, mas com um olhar curioso e analítico desse momento pós-pandêmico com o advento exagerado das redes sociais, a própria forma de agir com esse outro momento da revolução industrial. Todo mundo virando funcionário das majors, essa sedimentação de uma ideia de trabalho que é muito subjetiva, né? Eu não queria usar o termo “uberização”, porque não estou falando de Uber, mas é mais ou menos isso. A gente está vivendo uma época em que as pessoas, hoje em dia, não pensam mais sobre questões trabalhistas, ou pensam na velhice. É um imediatismo frívolo e baseado na crença e na esperança de que há um poder de redenção na tecnologia que vai nos resolver a vida plenamente.
No entanto, a gente tá no meio de um gancho de velocidade tão alta que é impossível prever se daqui a dois anos alguma coisa dessa ainda vá existir. Pode ser que daqui a um ano, que amanhã o Spotify feche, e acabou, não tem mais. Também pode ser que apareça mais dez. A gente tá vivendo um período, talvez, de uma fé exagerada em um mecanismo que é totalmente frágil e esse disco olha para isso.
Eu não tenho a resposta, por isso a verdade não existe. A própria afirmação “a verdade não existe” já é uma verdade que, obviamente, também não existe. Até no logotipo de lançamento [do single] o “não existe” está riscado. Algumas verdades existem, precisam existir, mas outras precisam ser revistas, né? Por que têm ruas com nomes de generais? Vamos rever isso, será que esse cara merecia isso? Por que tem estátua na praça? É uma série de pensamentos e conceitos que precisam ser revistos e outros precisam ser reafirmados e restabelecidos.
Eu acho que tudo que eu faço como artista parte da observação. Estou para lançar um livro de poesias, vai sair mês que vem. Mesmo no lado dos poemas, ou das canções, têm muito a ver [com esse tema], porque é sempre um olhar sobre o que está acontecendo.
Pensando nessa coisa tão contemporânea, da informação e da pós-verdade, onde as pessoas nem precisam de uma “verdade” para acreditar nas coisas. De onde veio o “estalo” para criar arte sobre isso?
Talvez porque no meio da música, no meio da arte, essa onda chegou primeiro, do factível e do infactível, faz um tempo que a gente convive com isso. Artistas, em geral, são sintetizadores do seu tempo, estão olhando para aquilo o tempo todo, então essa é uma discussão que já está há algum tempo rodando.
A própria desmaterialização da plataforma artística, né? O quadro que não está mais na tela [de pintura]; a fotografia que, de repente, passa outro filtro; a música que já não está mais no CD, nem no vinil e volta ao vinil depois. Essa coisa intangível. Isso está sempre nas nossas conversas, né? A gente tá sempre tentando prever o que vai vir, com quase total certeza do erro, porque está tudo tão louco. Isso veio, cada vez mais, se tornando um tema, na minha vida pelo menos, e aqueles que estão ao meu redor, sobre como temos que estar atentos a isso e como temos revisto nossas verdades. Achei que era importante falar isso. Mery teve essa sacada, porque ela também está nessas conversas, então ela disse “vamos colocar isso no centro da mesa”.
Em relação ao álbum visual, é curioso lançar um álbum visual simultaneamente em diversas plataformas, já que, normalmente, ficam disponíveis em um streaming só. De onde veio essa ideia?
Eu acho que a gente está vivendo em uma época tão difusa, o que é louco porque essas “bolhas” deveriam objetivar, deixar mais direta a entrega do material. No entanto, não é assim né? Você tem uma série de camadas que vão permitir, ou não, a entrega do material. Então, cada vez mais, a gente esteja querendo ou pretendendo experimentar essa possibilidade de chegar nas pessoas através de diversos caminhos.
Saiu o single agora, e dois amigos meus estiveram aqui na semana e eles não tinham ouvido, dois amigos pessoais. Que louco né? Pessoas que, teoricamente, me seguem e me veem. Certamente estão saindo coisas agora de amigos meus que eu também não estou vendo. Essa ilusão de democratização da informação quando, na verdade, as vias são obstruídas propositalmente; existem pessoas que abrem e fecham comportas. A gente pensa que tá jogando para o mundo, mas não tá jogando. Jogar [o álbum] assim em várias frentes talvez seja isso também, uma vontade de que isso se expanda, vaze por outros caminhos, arrebentem muralhas.
Esse debate é algo também muito presente na comunicação, essa questão da noção de verdade. Se a informação não circula, os conhecimentos não se espalham e as pessoas não refletem.
Fica aquela coisa da “Tia do Whatsapp”, né? Existe a “verdade” dela, que não é uma verdade, mas que, para ela, passa por [uma verdade], né? Porque entrou ali. E em certo ponto você começa a pensar: “O que, para mim, também é verdade? Será que em algum aspecto da minha vida, cultural ou não, eu não tenho esse pensamento de tia do Whatsapp?”.
Porque tem verdades inventadas né? Aquela velha história de que a mentira repetida mil vezes se torna verdade. Então vão virando as “verdades” que, certamente, em alguma medida, talvez todos nós tenhamos bebido de uma “verdade dessa”. Então eu acho que precisamos rever, pelo menos abrir a possibilidade de rever.
A proposta do álbum visual é ter como paisagem o Centro da cidade. Qual a sua relação com o Centro e porque a escolha de trazer ele como paisagem?
Primeiro, eu moro no Centro da cidade, eu moro na rua da Aurora, e aí quando houve o pensamento do que seria esse audiovisual, essa questão da verdade era muito importante que existisse, inclusive na feitura. Então, por exemplo, as músicas foram gravadas sem nenhum tipo de truque eletrônico, não há overdubs e nada é mexido. Não há maquiagem nem na câmera, nem em mim, e o que você vê na paisagem é um caminho que eu, de fato, faço muito, porque vou muito no sebo de vinis, e começa no beco aqui do lado da minha casa.
Já que é para ser verdadeiro, vamos à vida verdadeira, então eu estou caminhando por lugares que eu caminho de fato, e me relacionando com o que têm sido minha paisagem há vinte anos. Então era importante que fosse assim, não poderia ser no estúdio, um lugar inventado, que tivesse algum tipo de plasticidade ou de requinte técnico. A ideia era que houvesse verdade naquilo, e eu só poderia dizer aquelas coisas e cantar aquelas músicas passando por aqueles lugares. Foi uma junção do ambiente externo com o ambiente interno.
Existe algum questionamento ou crítica em relação ao estado do Centro hoje? Porque é uma verdade que existe o abandono da região.
Tem isso também, tem um pensamento sobre urbanidade. Um pensar sobre o véu das coisas, porque, na minha visão, o sucateamento do Centro passa por uma coisa que está ligada à grana, para poder gentrificar posteriormente. Tem uma mudança da paisagem, uma gourmetização. E nada é mais falso que isso, mais mentiroso. É perceptível que há um plano nisso, em transformar essa área em outra coisa. Então colocar isso no vídeo, registrar, é também uma maneira de apontar isso, mesmo que subliminar. Pode ser que daqui a pouco o sebo de vinis nem esteja ali. Mais do que uma crítica, é um documento, que possa possibilitar uma crítica depois.