Foto por Ian Rassari Dona Marias Produtora

Jéssica Caitano apresenta o rap repente no seu “eletrococo muderno”

Inspirada na oralidade da poesia falada do Sertão do Pajeú, a cantora e compositora viaja o Brasil em seu projeto solo e critica o estereótipo de "música regional"

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Foto: Ian Rossari/Divulgação.

De repente, nos sentidos literal e figurado, e de maneira muito natural, ela uniu os modelos de métrica do rap com a poesia popular do repente nordestino com uma pitada de beats eletrônicos reimaginando os ritmos tradicionais de Pernambuco, como coco e ciranda, em uma sonoridade singular e cheia de atitude.

Jéssica Caitano é uma filha orgulhosa da cidade de Triunfo, 405 quilômetros de Recife e localizada na região do Sertão do Pajeú, em Pernambuco, a rapper, cantora, compositora, percussionista, educadora e ativista iniciou sua trajetória na música pela cultura popular, e foi ao lado do grupo Radiola Serra Alta que ela desenvolveu sua linguagem do “eletrecoco muderno”. A artista é uma das homenageadas do Festival de Triunfo, um dos eventos mais importantes do calendário de cinema de Pernambuco.

Jéssica é uma das atrações do No Ar Coquetel Molotov, que acontece neste sábado, onde se apresenta no palco principal. Nesta entrevista concedida por telefone à Revista O Grito!, a artista falou sobre os desafios da sua carreira, suas referências, o cenário do rap e vários outros assuntos.

Vamos começar pelo princípio: como foi o seu início na música?

Comecei na música em 2006 como percussionista tocando em um maracatu aqui da cidade de Triunfo, o Maracatu Serra Grande do Pajeú, e logo em seguida comecei a fazer palco com a banda Ambrosino Martins. Fui percussionista desse e de alguns outros projetos. Em 2011 eu estreei no palco cantando com o meu primeiro projeto de música autoral chamado Jéssica Caitano e os Gatos Mouriscos, depois daí vieram todos os outros, o Cristaleira, a Radiola, enfim tudo que veio de lá pra cá. Mas tudo nasceu da percussionista, foi a base de tudo.

Quando foi que surgiu a ideia de misturar rap, repente, coco e beats sintéticos?

A mistura do rap com repente, coco e beat sintético veio logo no começo ali com o Ambrosino. Logo que eu entrei para a banda Ambrosino, a galera tava começando a fazer essa pesquisa de misturar percussão, batuque, tambor, alfaia com a música eletrônica. Então, eu já entrei no projeto começando essa pesquisa e em seguida entrei pra Radiola Serra Alta , que também é um projeto ligado a essa pesquisa. Então, veio tudo junto com essa poesia que eu vinha fazendo, porque eu me descobri poeta antes da música, então começamos a juntar essa poesia a essa pesquisa sonora que a galera estava fazendo já desde aquele momento ali com o Ambrosino por volta de 2006.

Você acha que existem ligações ou um parentesco entre o rap e repente??

Eu acho que o parentesco entre o rap e o repente é o fato de ser a poesia falada, de ser a oralidade ali sendo mais forte, presente numa vivência, contando uma história, trazendo uma situação, defendendo uma causa. Enfim, é a palavra dita, né? A comunicação, a oralidade em sua maior potência. Eu acho que tem toda uma ligação, tá tudo junto e caminham muito bem.

Quais são as suas principais referências??

Minhas principais referências vêm de dentro de casa, muito da tradição do meu bisavô paterno que era repentista e luthier. Ele fazia as violas de repente, cantava, era repentista, improvisador e a minha bisavó materna Mãe Calú, ela cantava, era cantadeira de coco, ia pras sambadas cantar e sambar. Enfim, venho trazendo muito dessas duas figuras, eu pesquiso muito sobre a minha família e trago muito essa representação das mulheres com quem eu fui criada, com minhas avós, com minha mãe na Zona Rural. E eu acho vem muito desse lugar as minhas pesquisas, o que eu falo, tudo o que eu digo vem muito desse lugar de fala ancestral, dessas figuras que vieram antes de mim e tiveram essa ligação com a música, com o repente, com a cantoria, com o coco, então vem muito desse lugar familiar.

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Você utiliza ritmos regionais para produzir uma música global, você acha que esse rótulo de ritmo regional limita o alcance e as possibilidades na música?

O rótulo de ritmo regional não limita o alcance a possibilidade da música, mas eu acho que separa a gente de alguma forma. Porque parece que só é regional o que não tá ali no eixo São Paulo/Rio. E aí dá uma separada no negócio e me incomoda pensar que esse é o rótulo: música regional o que a gente faz. E não: é música. É universal, não tem porque tá rotulando dessa forma.

Qual a importância de ocupar esse espaço que você ocupa hoje, com shows em São Paulo e outros lugares, além de parcerias com bandas como Nação Zumbi, Bixiga 70 ou o cantor Curumin?

Ocupar esses espaços é importante porque cada dia mais a gente precisa ver os sertões tendo esse lugar de fala também na música e em outras linguagens. Nós somos tantas vezes fonte de inspiração para tanta coisa, para filmes, músicas, poesia, eu acho que a gente se vê também nesses espaços e estar neles é preciso. A gente cruzar essas fronteiras que são colocadas para que a gente crie essas pontes e faça essas trocas, então acho que é sempre importante mantermos esse fluxo, estarmos sempre correndo ao máximo, trocar a o máximo, chegar em outros territórios, trocar com outras pessoas. Porque essas trocas com outros artistas que a gente tanto admira vem a partir desses espaços que a gente vem conseguindo ocupar.

Como a cidade de Triunfo influencia sua obra/carreira??

A cidade de Triunfo, o sertão do Pajeú como um todo, influencia totalmente a minha obra. Tudo o que eu escrevo é muito sobre o meu território, é muito sobre o que eu vivi na Zona Rural com as minhas avós, que eu ouvi da vivência da minha mãe também na Zona Rural. Então, tô sempre falando sobre isso, tô sempre trazendo esse olhar, essa natureza: o sertão, a caatinga, o Pajeú, a poesia. Então, estar no meu território, ocupar ele também é muito importante. Ao mesmo tempo que eu me alimento dele, eu tô acompanhando essa mudança, escrevendo, me alimentando também desse verso, dessa terra, desse olhar, dessa natureza. É o mais importante dentro do meu trabalho.

Qual a sua relação com a poesia do Sertão do Pajeú?? Existe influência no seu trabalho??

A minha relação com a poesia do Pajeú é a coisa mais importante que eu tenho na hora que eu penso em compor, que eu penso no meu trabalho. Porque eu me descobri primeiro poeta na sala de aula criança, fazendo meus trabalhos da escola e falando poesia. Nem fazia ideia que o meu território era tão rico em poesia porque infelizmente isso não foi trabalhado comigo em sala de aula. Hoje em dia a gente vê que tem várias cidades aqui no Pajeú, São José do Egito, onde a poesia é disciplina escolar e está sendo trabalhada na sala de aula, então infelizmente na minha época não tive isso. Só na adolescência que vim entender que a minha região era tão rica em poesia e o meu bisavô tinha sido poeta, cantador e repentista. Só depois de muito tempo eu entendi que estava no caminho certo de alguma forma e que precisava me manter nesse caminho.

O que é o rap repente??

O Rap Repente pra mim é essa mistura do modo de se cantar, essa mistura de oralidades. A forma do rap da poesia falada, mas com aquele sotaque, aquela entrega, aquela métrica, aquela melodia do repente atravessada. Acho que são essas duas formas de se cantar, de falar e de se comunicar se costurando e se emaranhando.

Fale um pouco sobre a sua parceria com o Radiola Serra Alta. Existe chance do grupo voltar??

A minha parceria com o Radiola Serra Alta começou bem lá atrás, acho que 2011 eu tava no projeto, mas naquele corre de palco, meio roadie, meio produção, ajudava a montar os equipamentos, desmontava, ajudava na passagem de som. Aí um dia eu fiz um coco, que era o Coco da Radiola, cantei no carro a gente indo pra um show e a galera achou massa, me disseram: ‘Pô, véi, tem que cantar isso na abertura do show hoje’. Aí eu fui lá e cantei. Desde desse dia eu fiquei cantando na abertura do show, ajudava a montar o equipamento e fazia esse abre. Depois fui compondo mais, a gente entendeu que valia a pena botar essa voz porque a Radiola era uma dupla eletrônica que não tinha vocal, de vez em quando rolava umas participações, parcerias com alguns artistas e tal. Mas nada fixo. E a partir dali a gente entendeu que seria interessante colocar esse vocal, ia dar um up e ia ser massa. Fiquei todos esses anos cantando, compondo. Tô ali no disco Computador de Ciço com a música Coco Nosso Senhor que foi uma das primeiras que eu fiz pra Radiola e no disco que foi lançado ano passado entrei também nas composições e o projeto acabou encerrando suas atividades de palco, mas segue produzindo com alguns artistas e eu fico muito feliz de ter sido parte.

Você acha que existe toda uma cena de rappers e beatmakers nordestinos se organizando para mudar o jogo da cena musical e furar a bolha que existe em volta do cenário do rap no sudeste? É muito difícil essa perspectiva??

Tem muita gente fazendo som massa pelos sertões, nos agrestes. Muito beatmakers, muitos rappers que estão se organizando sim e eu acho que o jogo e a cena já estão sendo mudada, acho que tá todo o mundo meio que se encontrando ali. A galera teve muito tempo também pra pensar nesses novos olhares ali do que queria falar, pra onde ia caminhar e tem muita coisa se encaminhando. Tô vendo muito artista novo fazendo um som aqui e tô produzindo com uma galera daqui também. A cena vem mudando e vai mudar mais e é isso que a gente tem que fazer, ocupar também esse espaço, levar nossa palavra, nosso som pra que outros espaços sejam ocupados e que a gente consiga disseminar nossa verdade através da música.

Existe muito preconceito e xenofobia na cena?

Infelizmente existe preconceito e xenofobia em vários espaços. Em várias cenas diferentes, não só na música, não só no rap, não só no artístico, né? Eu acho que tá infelizmente em vários lugares do nosso país. A gente vê isso sendo de alguma forma um assunto debatido e vamos ter que lidar com isso também. É mais uma coisa, além de todas as outras. Além das distâncias geográficas pra acessar os espaços que conseguem fomentar melhor a nossa cena, quando chegamos num local desse enfrentamos também preconceito, mas eu acho que o fato de estarmos lá diz muito sobre isso tá sendo quebrado também, de alguma forma. Então, é manter isso. Buscar educar as pessoas, a base é essa: tentar o diálogo a partir da educação e ocupar esses espaços de sala de aula pra tá falando sobre isso, levando a cena pra dentro da escola, porque a partir disso a gente começa um caminho e uma construção mais significativa.

Quais os seus próximos passos?? E sonhos a realizar??

Meus próximos passos são várias parcerias massa, algumas que já saíram com artistas que eu venho somando e pretendo somar mais, pessoas que eu admiro, que eu sou muito fã. Tamo focada também em gravar um disco, lançar um álbum solo porque tenho muitas parcerias com vários outras artistas, mas ainda não tenho um disco. E tô trabalhando pra fazer mais um bocado de show massa, em parceria com vários artistas que admiro. Acabei de fazer show com Curumin que eu sou muito fã, acabei de fazer show com Luedji Luna que é uma artista que sou muito fã também. Vai ter show daqui pouco com o Coco Raízes de Arcoverde, que é uma galera que é muito referência pra mim, quando eu era criança eu ia daqui de Triunfo pra Arcoverde com a minha irmã pra assistir o Coco, para assistir o Cordel do Fogo Encantado. E daqui a pouco também vai ter lançamento com Clayton Barros, que é uma referência pra mim. Então, é isso, são vários encontros, que é algo que tem me deixado muito feliz que é pensar essas outras formas de compor, esses outros olhares desses artistas me abraçando.

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